domingo, 20 de abril de 2014

Atrophy: um enigma do thrash metal

Em algum escritório sob ameaça de ser esvaziado, alguém, num lampejo de criatividade mercadológica, teve uma idéia - coisa que executivos de gravadoras passaram a precisar ter desde que os fantasmas do Napster e do mp3 começaram a rondar o negócio de discos. Pode até ser que o plano não tenha surgido de uma mente acostumada a ler a parada da Billboard como algum dos personagens de Matrix lê os códigos que parecem escorrer na tela de um computador, transbordando de uma "mente-mestre" ávida por se reproduzir como um vírus - pouco importa. Alguém escolheu quatro bandas que, em algum momento de suas trajetórias, estiveram associadas fortemente ao thrash metal, gênero que, pelo cânone, é uma mistura de heavy metal e hardcore; uma resposta ao rock "farofa" tocado por aspirantes a travesti de bandas como Poison, Mötley Crüe e Cinderella. A convenção também dispõe que o thrash surgiu na "bay area", região de São Francisco, Califórnia, que compreende parte da própria San Francisco, Oakland e San Jose. Havia, ali, uma massa de jovens que ouviram muito Black Sabbath, Judas Priest e Iron Maiden - mas que, contrariamente aos seus correspondentes de Los Angeles, não tinha nenhum interesse por maquiagem ou permanentes no cabelo.

  Metal, isso? R: NÃO.

O thrash metal é um filho indesejado e nascido a fórceps - e não é nenhum exagero dizer isso, quando se considera o que era feito no começo dos anos 80. As grandes bandas de heavy metal estavam em atividade, gravando e excursionando, com bons resultados (embora a qualidade do material fosse questionável). Mas o dever do filho é sempre superar o pai. Gerações de ouvintes de Kiss e Deep Purple digeriram e regurgitaram álbuns emblemáticos e, na falta de alguém para lhes dizer o que fazer ou para onde ir, resolveram aumentar o volume além do "11" do amplificador do Spinal Tap. Era o momento pelo qual, talvez sem saber, Tony Iommi tanto esperasse: ele não precisava mais ser o protagonista, o líder; não precisava mais acordar cedo e puxar a fila. Aliás, se formou uma fila de criadores de riffs centenas de vezes maior do que todas as linhas de cocaína que ele já tinha cheirado em toda a sua vida. O heavy metal cresceu como uma supernova e explodiu: surgiu uma nova galáxia.

Metal, isso? R: Quase.

Algumas das influências mais citadas pelas novas bandas de thrash metal, aliás, eram subprodutos do Black Sabbath: Angel Witch, Diamond Head e Saxon estavam entre as principais. Estas eram, por sua vez, a resposta inglesa à estagnação do metal tocado por lá - o que é perfeitamente compreensível quando se considera o evidente declínio das bandas grandes que haviam começado sua trajetória no final dos anos 60. Mas os ingleses tinham, talvez, mais pruridos que os americanos: enquanto criaram atos teatrais como Venom e Iron Maiden, os americanos tiveram outras idéias. Aliás, a idéia principal era justamente essa: a agressividade não estaria nos pseudônimos, nas roupas de couro justo e nem em referências a satã, mas no som, nos riffs, na levada.Os trajes, é claro, eram deliberados; entretanto, para parecer mais como mendigos do que sacerdotes de algum culto satânico medieval.

 Metal, isso? R: SIM. 

E assim surgiu o Metallica; da sua costela arrancada violentamente, o Megadeth. E também da bay area vieram Slayer, Testament, Exodus e Dark Angel. E o thrash metal se espalhou pelos EUA: do outro lado do país veio o Overkill, de New Jersey; de Nova Iorque veio o Anthrax. Mas não para por aí, de jeito nenhum. No Arizona havia grandes bandas de thrash metal. O baixista Jason Newsted, que substituiu Cliff Burton no Metallica, é egresso de uma delas, o excelente Flotsam and Jetsam, ativo até hoje. Há também as que desapareceram, e a mais enigmática delas - pelo menos para mim - é o Atrohpy. 

 
Conheci o Atrophy por acaso. Lá por 1995 eu fazia aulas particulares de matemática, e precisava pegar dois ônibus para ir às aulas, mais dois para voltar. A parada das duas conduções era um pouco distante, e no caminho tinha uma loja de discos. Voltando de uma aula entrei na loja, e vi um grande cesto de vime cheio de discos com uma folha de papel rabiscada de pincel atômico indicando que qualquer exemplar daquela cesta custava R$ 1,00, dinheiro que eu tinha para gastar! Me dirigi à pilha de discos usados e o terceiro ou quarto que olhei pareceu promissor. O nome da banda escrito em letras pontudas e afiadas; um palhaço psicótico entre filas de mísseis balísticos marcados "USA" e, do outro lado, outros com a foice o martelo; no verso, a marca da Roadrunner, selo que lançou grandes discos de metal. Os nomes das músicas e a foto da banda - alguns integrantes com cintos que imitavam fitas de munição de metralhadora - me convenceram: só podia ser um disco de metal, e dos bons. Cheguei em casa e confirmei: era uma pedrada. Um disco excelente, daqueles que, quando acaba, parece que acabou de começar. As músicas tinham estrutura como as do Iron Maiden, mas com muito mais peso e agressividade. O som do disco era afiado; os riffs tinham a proeminência certa, mas o baixo era totalmente audível e o som da bateria claro. O vocal era sem invencionices: agressivo e rasgado sem ser exagerado ou caricato.



A banda é extremamente competente, e o som, absolutamente redondo. As alternâncias entre levadas rápidas e outras lentas são executadas com perfeição, as passagens mais truncadas com segurança. Todas as músicas tem refrões excelentes, bons solos, passagens rápidas com dois bumbos tocados como um metrônomo. Na faixa "Preacher, Preacher", por exemplo: lá pela metade todo mundo para, e o baixo comanda a volta para um trecho que soa como a mistura de Iron Maiden e Testament. Na sequência, uma faixa chamada "Beer Bong", com a homenagem a diversas marcas da bebida e um riff tão cortante como a notícia de que a cerveja acabou. A música que dá nome ao álbum é uma obra prima do thrash: a quantidade certa de alternâncias entre as levadas e um riff memorável, com o baixo, de novo, comandando as mudanças.

E assim eu poderia seguir descrevendo músicas excelentes, executadas com perfeição, letras inteligentes sobre temas relevantes - que incluíam a guerra fria, vigente à época do lançamento - sem que você tivesse a mínima idéia do que eu estou dizendo. Porque o Atrophy gravou esse disco, gravou mais um, e sumiu. Nunca fez uma tour abrindo para o Slayer, nunca tocou em um grande festival de metal, nunca veio ao Brasil. "Socialized Hate" foi lançado em 1988, seu sucessor, "Violent by Nature", em 1990. É outro baita disco, muito melhor do que qualquer coisa que o Overkill ou Annihilator tenham gravado; no entanto, nunca vi uma camiseta do Atrophy pra vender; o que dizer, então, de ver alguém usando uma na rua. Do Overkill, por outro lado...

 
É difícil, para mim, entender como encontrei um vinil usado do Atrophy em um pequeno sebo de discos que não existe mais, em Curitiba, há quase 20 anos, e ninguém nunca ouviu falar da banda - especialmente quando se trata de uma banda tão boa. Qual foi o problema? Sorte? Timing? Ou excesso de entusiasmo meu? Nunca saberemos. Isso tudo é sempre desculpa para, entre várias cervejas, a retomada de um velho debate com amigos entusiastas de som: por que certas bandas dão certo e fazem sucesso, e outras não? Sempre me pareceu que o Atrophy reunia todas as condições para ir longe e ter uma grande trajetória - e não estou nem falando do estrelato milionário do tipo "Big 4", mas das bandas de thrash que permanecem fiéis às suas raízes e não fazem concessões comerciais, e continuam, ao longo do tempo, mantendo um exército de fãs por todo o mundo. Em suma, o Atrophy poderia facilmente ombrear com o Exodus ou com o Testament. 

Seja como for, por muitos anos tive só o vinil de "Socialized Hate", e faz muito tempo que não tenho um toca discos. Claro, posso ouvir nos youtubes e groovesharks da vida, mas gosto de discos e sempre quis poder ouvir o Atrophy novamente, no aparelho de som, e não no fone de ouvido ou nas caixinhas esquálidas do computador. Eis que fui à gloriosa Galeria do Rock (na véspera da sexta-feira santa, veja só) e lá encontrei o CD. Primeiro em uma loja em que o vendedor tentou me cobrar R$ 75 - talvez porque eu tivesse dito que procurava o disco há anos, tinha saudade etc. Desisti. Andei mais um pouco, entrei em outra loja, achei o mesmo CD por R$ 38 - aliás, o mesmo relançamento de um selo polonês que tentaram me empurrar antes, que é numerado, já que apenas 2.000 cópias foram prensadas. O primeiro que me ofereceram era o 1201. Esse era o 1202, quase pela metade do preço. Levei sorte - e me senti novamente com 16 anos, como se estivesse pagando R$ 1,00 pelo mesmo disco.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Esse Quam Videri

Em algum filme que vi, não consigo lembrar qual, um personagem descreve uma situação e diz que alguém teve um ataque de "self-righteousness". A tradução dessa expressão, na legenda, foi "farisaísmo". Não entendo nada da bíblia e não sou linguista, mas, na hora, aquilo fez sentido. Pelo pouco que consigo lembrar, "fariseus" eram um daqueles grupos religiosos que disputavam a primazia na Galiléia, na época de Jesus. E a vibe nessas disputas religiosas é sempre a mesma: prevalece o desígnio divino que cada grupo atribui a si, conforme uma interpretação peculiar das escrituras, ou algum fenômeno natural raro e tido como sinal divino etc. Saduceus, Fariseus e Macabeus disputavam a primazia de ser a religião "verdadeira" - como, de resto, acontece até hoje em praticamente toda religião monoteísta. "Fariseu" tem, entre cristãos (especialmente os que conhecem bem a religião), um tom pejorativo, mas não é nem esse o ponto.

"Farisaísmo" é a tradução perfeita de "self-rignteousness" exatamente porque, numa discussão sobre bases mais ou menos impossíveis de comprovar materialmente, toda a argumentação se transforma em auto-indulgêcia: o "sim porque Deus quis" que, materialmente, é o mesmo que  "sim porque sim".

Gente realmente qualificada já escreveu sobre isso, mas qualquer semelhança entre isso e ideologia e ativismo não é apenas coincidência. Ativismo e proselitismo religioso são a mesma coisa.

Ora, o religioso que bate na sua porta e promete o paraíso (caso você se filie àquela religião) não tem como, materialmente, comprovar tudo o que ele está dizendo - tem? Não, não tem. É o mistério da fé etc.

A mesma coisa acontece com o ativista. O ativista, assim como o proselitista religioso, quer mudar alguma coisa. O proselitista religioso se contenta em ganhar ovelhas para o rebanho - para pagar dízimo, aumentar a frequência da igreja, fazer boas ações etc. Para ganhar essas ovelhas, o proselitista religioso precisa mudar alguma coisa, sim: ele precisa convencer o destinatário das suas mensagens a acreditar naquilo que ele promete (e que nunca é de graça: é preciso ter fé, orar, fazer o bem etc.). Se o proselitista consegue fazer isso, sua missão está cumprida.

Com o ativista, é um pouco diferente. O ativista quer mudar alguma coisa, mas não é só a sua cabeça: é "a sociedade", "o mundo", "as coisas", "o sistema". Não que ele também não tente convencer outros indivíduos; mas, para o ativista, é o aspecto coletivo muito mais importante que o individual.

O que há em comum entre os dois, ativismo ideológico e proselitismo religioso, é a impossibilidade material de provar o acerto das propostas que denfendem: o proselitista não consegue provar que existe um paraíso no além; o ativista não consegue provar que pode existir um na terra. Em nome de ambas as coisas também já se derramou bastante sangue e muitas pessoas sofreram - no entanto, as pessoas não desistem de tentar ter razão e invocar para si o monopólio da certeza do que é melhor - não apenas para si próprias, mas para todos os seus semelhantes. E isso é feito, no caso do ativismo, sob um "escudo ético" (expressão emprestada de Frederico Pernanbucano de Mello, autor do estupendo "Guerreiros do Sol") de se estar pretendendo "fazer o bem", ou "melhorar a sociedade" ou, ainda, "corrigir injustiças". No clima de relativismo moral que sempre foi típico da cultura brasileira, essas coisas vicejam com ainda mais facilidade - especialmente agora que vivemos na era do "pobre quando come melado se lambuza" como justificativa para qualquer malfeito cometido no governo, já que o é sempre "pelo bem dos pobres" ou no curso da melhoria da vida destes.

Por enquanto, esse tipo de ativismo rendeu um bom dinheiro para seus protagonistas mais bem colocados: blogueiros ditos "progressistas" que são sabujos do governo; donos de "ONGs" com ligações partidárias; profissionais de exegese e hermenêutica da Lei Rouanet. Quem ainda não conseguiu uma "boquinha" - por incompetência ou por algum pejo - passa o dia na internet pedindo doações enquanto entoa loas a si próprio, explicando como é tolerante, magnânimo, superior à moral amesquinhada da "classe média", da "grande mídia", "da igreja" e de outras grandes entidades abstratas - que são apenas sparrings retóricos sobre os quais essas pessoas, no mais das vezes, pouco ou nada sabem a respeito.

Veja o exemplo d'O Escritor que pretende ensinar tudo: desde quanto e o que consumir, a como ter relações sexuais e arrumar a casa. Para ele, todas as convenções sociais são "prisões": orientação sexual, emprego, casamento, aquisição de bens materiais etc. O sujeito é tão confuso que chega a se lamentar por não ser homossexual, argumentando que isso o "priva" de uma experiência mais completa da sexualidade. Ele, no entanto, vende palestras nas quais tenta convencer quem for incauto suficiente a pagar por isso a fazê-lo. E se explica: "sou mesquinho com minha sexualidade". Mas que belo espécime de super-homem, não só ele sabe o que é melhor para todos nós, ele também é capaz da auto-crítica!

O fenômeno se repete na tropa de "feministas de internet",  ativistas digitais que passam os dias a patrulhar em busca de ocorrências de opressão pelo patriarcado em todas as instâncias da vida. E elas se fundam em estatísticas - algumas, verdadeiramente estarrecedoras - para corroborar seus pontos de vista, como a ocorrência de um estupro a cada cinco minutos no Brasil (acho que era isso) ou o assassinato de aproximadamente uma dúzia de mulheres por dia, que pretendem transformar no crime de "femicídio". Há, também, recursos de argumentação e conceitos exclusivos das feministas, como "empoderamento" (na realidade, um neologismo que vem do anglicismo "empowering") e o fascinante conceito de "falsa simetria". A tal "falsa simetria" significa, a grosso modo, que se um homem e uma mulher sofrerem idêntico ato preconceituoso - digamos, não ser contratado em vaga de emprego por conta de serem, justamente, homem ou mulher - o homem sofrerá menos opressão pois, ao longo de toda a história, a mulher foi mais oprimida. A lógica é: um homem jamais deixaria de ser contratado por ser homem, logo, ele é menos oprimido, logo, não existe simetria possível para se comparar as agruras sofridas por homens e mulheres na internet.
O "conceito" teve seus dias de glória nos embates sobre aplicativos de avaliação de homens e mulheres (Lulu e Tubby), assunto que por dois ou três dias pautou as redes sociais. Indagada sobre a questão, uma internauta respondeu apenas "não pq falsa simetria", a panacéia retórica que encerra qualquer discussão entre opressores e oprimidas.

A questão, no fim das contas, é: o ativismo tem alguma finalidade, além de compor a personagem de quem o professa?

Há quem diga que sim, que a encheção de saco "cria awarness", faz as pessoas procurarem saber mais sobre questões importantes e, quem sabe, até deixarem de ser aquilo que o ativista deseje que elas deixem de ser - o que deve ser bom, já que ativistas só querem o bem de todos nós, não é mesmo?

Por outro lado, há uma máxima que é sempre repetida: "ninguém muda ninguém". Em discussões de internet, quando a incoerência de alguém é exposta, é comum que a discussão acabe rapidamente em um consenso: "não adianta apontar a incoerência de ninguém". E, de fato, é raro que alguém admita ter mudado de idéia.

Até acho que ativistas notórios tenham preocupação verdadeira com as causas sobre as quais professam - mas acredito mais ainda que a maior preocupação dele, do ativista de internet (veja bem: estou falando do ativista que fica o dia inteiro no computador, cagando regra, não daquele que põe a mão na massa e, silenciosamente, se dedica, diretamente, a qualquer causa), é parecer alguma coisa: parecer bom, parecer preocupado, parecer engajado. PARECER, apenas. E isso me lembra sempre o lema da faculdade de música de Berklee, instituição na qual, quando era adolescente, sonhei em estudar: ESSE QUAM VIDERI. Tanto quanto a tradução de "self righteousness", a expressão fazia, pra mim, todo sentido: "SER, AO INVÉS DE PARECER" era o lema da universidade. Estudar profundamente música, conhecê-la e dominá-la, ao invés de apenas parecer um músico. Isso fazia muito sentido. Mais do que conhecer o jargão ou passar a tarde em lojas de instrumentos musicais, ser músico era conhecer música profundamente, estudá-la: não apenas parecer um músico.
Com o ativista de internet acontece, curiosamente, o contrário. Se ele for pego em uma incoerência, invariavelmente vai reagir acusando de inveja ou ódio, ou os dois. "Ódio gratuito", "haters gonna hate" etc. Se você discorda de um homossexual, é homofóbico. Se discorda de uma feminista, é machista, e por aí vai. E o assunto pode ser o mais trivial, como uma receita de bolo. O deputado Jean Willys, todos lembram, foi flagrado gastando verba parlamentar para pagar cervejas bebibas por ele na beira da praia - e acusou de homofóbicos todos os que cobraram dele uma explicação.

Essas são as demonstrações mais eloquentes de que se trata de uma cultura de aparências: o deputado, nem quando flagrado malversando dinheiro público, deixou de lado seu ativismo. Não se preocupou em ser taxado de "ladrão" tanto quanto em deixar de ser um ativista. O mesmo acontece com outros exemplos de ativistas de internet, os quais mantém outras atividades que não o ativismo e, quando confrontados sobre a falta de qualidade de seu trabalho, se saem com a acusação de machismo, racismo, homofobia ou algum outro tipo de "preconceito".

Isso poderia ser sintomático de arrogância, de pessoas que tem tanta certeza de ser infalíveis que qualquer crítica só poderia vir de uma mente preconceituosa - mas é mais complicado do que isso. De maneira mais ou menos consciente, todo ativista sabe que o ativismo deve, sempre, ser a aparente questão central da existência. Não se admite nenhum desvio: a causa exige empenho sempre, 24 horas por dia, 7 dias por semana. Pode olhar: todos os ativistas tem isso em comum, não falam de outra coisa e, se falam, é sempre de maneira a relacionar o assunto com a causa e o ativismo (mesmo maltratando a lógica no processo).

Nesse passo começam a pipocar semelhanças com outras coisas - e embora ativistas de internet sejam, hoje, mais um motivo de troça do que qualquer outra coisa, é de se pensar o que fariam se conquistassem, um dia, poder de verdade.

Não tenho a menor dúvida que alguns deles fuzilariam, sem pensar, seus adversários - e pode apostar que o fuzilador teria mencionado "democracia" e "tolerância" em sua timeline muito mais vezes que o fuzilado.




terça-feira, 15 de outubro de 2013

Procure saber (onde está o dinheiro)

Isso certamente passa pela cabeça de Paula Lavigne e dos artistas representados por ela no mesmo ritmo que as quantias de royalties recebidas por eles diminuíram na última década. No caso da empresária, deve ser ainda mais preocupante já que ela, em tese, fica com apenas parte daquilo que seus clientes recebem - ou recebiam. O mp3 acabou aos poucos com os "formatos físicos", e hoje ninguém mais é obrigado a comprar o disco para ouvir as músicas. Aquela que era a principal fonte de renda dos artistas secou - é verdade que figuras como Lobão sempre disseram que o dinheiro vinha mesmo dos shows, eis que as gravadoras roubavam tudo para elas, e talvez as coisas no Brasil fossem um pouco menos organizadas e transparentes do que em outros lugares. Tim Maia era outro que se queixava.

Seja como for, é interessante notar como em alguns gêneros musicais as coisas mudaram - aliás, para benefício dos fãs. Quem achava que veria o Black Sabbath praticamente original reunido, sendo que claramente nenhum deles - talvez o Geezer - tem condições para isso? Quem achou que teria tantas chances de ver o Iron Maiden ao vivo? Ou, ainda, tantas e tantas bandas sendo reativadas, fazendo shows comemorativos de seus discos mais importantes etc? É ótimo para quem gosta de rock e metal ter tanta chances de ver suas bandas favoritas ao vivo. Mas o que será que as bandas e seus integrantes pensam?

Todas essas pessoas pensavam que, com 50 ou 55 anos, estariam aposentadas, vivendo dos rendimentos de enormes pilhas de dinheiro que se acumulavam todo mês, resultado da venda de milhões e milhões de discos, direitos autorais pela execução em rádio e TV etc. Poderiam cultivar seus hobbies em paz, viver sem preocupações e, além disso, manter o padrão de vida nababesco de rockstars. Veja a casa onde morava o vocalista do Metallica, por exemplo, e imagine apenas o custo de manter a grama aparada. Veja, também, aquele programa "Cribs" da MTV americana e, enfim, #procuresaber (hehehehe) algumas histórias folclóricas que flutuam por aí sobre gastos ridiculamente altos que artistas populares podem se dar o luxo de fazer.

Imagine o mau humor de algumas dessas pessoas quando perceberam que teriam que trabalhar até o fim da vida, como um blue collar qualquer? Pois é exatamente o que está acontecendo, e há muito choro e ranger de dentes. No campo do rock pesado arrisco dizer que um pouco menos - há reclamações mais ou menos frequentes sobre o impacto da distribuição digital descontrolada sobre o negócio da música, mas as bandas seguem fazendo extensas tours e voltando com freqüência ao Brasil, sempre com bastante profissionalismo e aparentando gostar do que estão fazendo.

Efeito similar certamente é sentido por Paula "Horseface" Lavigne e sua turma. Aliás e como já se disse, especialmente por ela, já que, além de fazer barracos e ser rude (como, reza a lenda, todo bom produtor deve fazer), ela é que cuida do dinheiro do Caetano e atua num negócio cuja principal mudança foi a pulverização das fontes de dinheiro de seus clientes.

Primeiro mexeram no ECAD, que até outro dia era suficiente para  "arrecadar" (qualquer um sabe que isso é uma piada) direitos autorais. A taxa de administração cobrada pela autarquia foi diminuída, além de outras alterações que fazem sobrar mais dinheiro para o artista. Fazia bastante tempo que o ECAD era problemático, um verdadeiro ralo de dinheiro sem nenhuma fiscalização - mas foi uma CPI que propôs a criação de uma nova lei para reestruturar o órgão e parar com a roubalheira. Paralelamente, tramitou uma proposta de emenda constitucional para isentar de impostos CD's e DVD's de artistas brasileiros (e também músicas compradas online). A "PEC da música" foi aprovada; o projeto de lei de resstruturação do ECAD ainda não.

Ambas as iniciativas foram encampadas pelo "#Procuresaber" de Paula Lavigne, e, na esteira do sucesso das mudanças, também passou a se discutir sobre biografias. O grupo liderado pela ex-mulher de Caetano é contrário à publicação desautorizada de biografias para serem vendidas - e usa como principal fundamento o art. 20 do Código Civil, o qual dispõe o seguinte:

"Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais".

O comando poderia ser redigido com mais clareza, é verdade. Afinal, alguém sempre poderia dizer que "a exposição ou utilização da imagem" tem um sentido mais estrito (como o direito de imagem do jogador de futebol) do que a interpretação corrente. Isso sem falar da segunda parte do artigo, que condiciona a proibição à violação da "honra, boa fama ou a respeitabilidade" do sujeito e a destinação a "fins comerciais". 

As coisas não são tão simples quanto podem parecer. O que seriam "fins comerciais"? Depende.
Pelé disse que jamais associaria seu nome ao de uma bebida alcoólica e, no entanto, todos conhecemos a gloriosa CANINHA PELÉ.



A cachaça comprou do Pelé o direto de estampar seu rosto no rótulo e batizar o produto com o seu nome.
Quantas pessoas compraram a cachaça só por causa disso? É impossível saber. Certamente gente que gosta de cachaça mas não de futebol deve ter comprado - entre outras tantas hipóteses. Em suma, é difícil mensurar se foi ou não um bom negócio para a fábrica, mas provavelmente sim.

E biografias, não seriam como cachaças com rostos famosos no rótulo? Não vendem apenas por que se trata - justamente - de alguém conhecido, sobre o qual o público tem curiosidade?

É aí que a questão começa a ficar tortuosa. Em parte, a resposta é afirmativa. Aliás, falando em "cachaça" e em "futebol", um excelente exemplo é a biografia de Garricha escrita por Ruy Castro. Quem comprou o livro, comprou porque admira Garrincha, certamente. Mas não só: quem conhece (e gosta, é claro) do texto de Ruy Castro certamente também comprou o livro por isso. E isso porque não se trata de uma narrativa apenas da vida privada do anjo de pernas tortas, mas de todo o seu contexto, de sua vizinhança, de suas origens. Uma boa biografia jamais será totalmente ocupada do biografado - aliás, nas melhores delas o equilíbrio entre, digamos, "o pessoal e o profissional" impera.
É o que acontece em outra excelente biografia escrita por Ruy, a de Carmem Miranda. Ao mesmo tempo em que a vida pessoal de Carmem é descrita, as indústrias musicais e de entretenimento brasileira e americana também são - em profundo detalhe, com uma preciosa discografia indicada por Castro e abundância de fontes e material que diz respeito ao período histórico em que a biografada viveu.
A biografia de Casimiro Montenegro, escrita por Fernando Moraes, é outro exemplo interessante: é muito mais a história do ITA e do surgimento da engenharia aeronáutica no Brasil do que da vida pessoal de Montenegro.

A questão está aí: uma biografia só será digna de interesse quando a vida do biografado se entrelaçar, de alguma forma, com a história. O argumento segundo o qual a privacidade deve ser protegida a qualquer custo é bastante pedestre, na exata medida em que quem o utiliza sempre parte de uma premissa como "e se resolvessem biografar sua mãe?" É uma variante das discussões sobre segurança pública em que alguém defende a morte de bandidos, outro alguém diz que não é bem assim e o primeiro retruca "é porque não foi com você ou com algum familiar".

Bem, diferente do que acontece com assaltos e latrocínios, ninguém está sujeito a ser "aleatoriamente" biografado - graças, justamente, ao funcionamento do mercado editorial. Se não há potencial para o livro se pagar, ele não será lançado - da mesma forma que acontecia, antes, nas gravadoras: nenhuma delas investia naquilo que achava que não tinha potencial para primeiro se pagar e, depois, dar lucro. Caetanos, Gils e Robertos vivem da margem de lucro sobre o ingresso de seus shows, e ninguém põe reparo nisso. Eles fazem o show; recebem por isso. Um show precisa se pagar (local, equipamento, transporte, iluminação etc.); o músico precisa comer, o artista precisa manter seu padrão de vida. Ou alguém acha que o Roberto Carlos recebe o mesmo que o baterista da banda dele a cada show?

É claro que não. Por menos de centenas de milhares de reais ele sequer sai de casa. E é porque ele é uma pessoa tão pública, mas tão pública, que não se pode dar ao luxo de sair de casa pra tomar um café na esquina - é um jeito de viver. Foi a vida que ele escolheu. É o preço que ele pagou. E é por isso que ele pode navegar no Lady Laura. Se ele quisesse ser um funcionário público anônimo, ele também poderia, mas viveria com um salário de funcionário público, e anônimo.

Mas não é só o dinheiro. Também há pessoas riquíssimas mas anônimas, e cujas biografias não teriam interesse literário e muito menos mercadológico.

Então, como resolver o problema? A intimidade de artistas como Caetano e Lenine vale "menos" do que a de uma pessoa anônima?    

Talvez a questão pudesse ser resolvida, de um ponto de vista mais moral, mediante o seguinte silogismo: quem escolhe viver tão publicamente sacrifica (uma modalidade de renúncia tácita, talvez?) um pouco de sua intimidade em troca dos lauréis mais elevados que a sociedade confere a seus integrantes.

De um ponto de vista mais, er, "jurídico", é aquela velha hipótese de colisão: de um lado, o direito do biografado a ter sua vida privada a salvo dos curiosos; de outro, o direito à informação, considerando que ele surge quando o biografado possui notoriedade suficiente para justificar o interesse. Eu não poderia dizer melhor do que o juiz que não deu a liminar par ao João Gilberto contra a Cosac Naify (a decisão está contida em outra, aqui). E, na boa, o raciocínio destrói qualquer defesa do possível do #Procuresaber.
Queiram ou não queiram, Caetanos, Gils e Robertos transcenderam a história de vida exclusivamente pessoal, de "intimidade", e são parte da história do Brasil. Impedir que essa história seja contada é, sim, censura. Eventuais exageros e incorreções podem ser corrigidos e punidos, exatamente de acordo com o devido processo legal - aliás, nos termos de parte do art. 20 do CC. Todo o aparato para que mentiras sejam punidas já existe. Qual é, então, o problema?

Voltamos ao começo: o problema é dinheiro. Livros são caros, tem potencial de vender bastante - eles querem receber, afinal, entendem que a biografia só vende por causa do biografado: e isso pode ser verdade quando se trata de coisas bisonhas como "biografias" de Justin Bieber - quase a mesma coisa que um caderno Tilibra com ele na capa, ou uma lancheira. Ninguém comprou uma biografia dessas por causa da sua qualidade ou da notoriedade de quem a escreveu (e onde se lê "ninguém", me refiro a adolescentes histéricas que aprenderam a ler há pouco). E, ainda assim, é óbvio que Justin Bieber tem alguma relevância - ainda que seja de pouca duração e mais ligada às estatísticas do que à relevância musical e cultural.

Em suma, o argumento segundo o qual o art. 20 do CC impede o "estouro da boiada", e que sua mãe seja biografada mesmo que não queira, é totalmente furado - tanto quanto os argumentos de Paula Lavigne e as infelizes colocações feitas recentemente por ela e pelo resto da turma.

 


  

quinta-feira, 2 de maio de 2013



Está morto Jeff Hanneman, guitarrista e principal compositor do Slayer. Isso é triste por diversas razões. Hanneman era novo, tinha apenas 49 anos. A causa da morte pode levar a conjecturas sobre se ela foi, de fato, prematura ou apenas o desfecho previsível de um hábito arraigado - o qual, por sinal, ninguém sabe se era de fato um problema. Dizem que Hanneman era patrocinado pela cervejaria holandesa Heineken e tinha geladeiras personalizadas em casa com um estoque infindável da bebida. Isso pode ser só folclore; só se tem certeza sobre algumas guitarras empunhadas por ele em que a logo da Heineken tinha as letras trocadas para que se lesse "Hanneman".



Foi também uma morte inesperada, já que nada se sabia sobre a saúde de Hanneman - tirante o bizarro acidente que o manteve afastado do Slayer por um longo tempo. Picado por uma aranha marrom enquanto tomava cerveja na banheira, ao que consta ele demorou a tomar as devidas providências. Quando chegou no hospital, a necrose havia se agravado pelo ataque de uma bactéria rara, e o guitarrista quase morreu. Entrevistado a respeito no curso de sua recuperação, ele garantiu que estava bem pois Satã havia cuidado dele. Ultimamente, se especulava sobre seu retorno ao Slayer - na esteira da saída do baterista Dave Lombardo. Novamente, não se sabe.

Na verdade, não importa. Pouco se sabe sobre os integrantes do Slayer, as pessoas físicas. A banda nunca foi objeto de documentários sobre a sua história, jamais expôs ao público o seu funcionamento e suas agruras, como outros fizeram, com resultados mais ou menos constrangedores. Para o Slayer e seu público, bastavam os discos e os shows. Os vídeos das apresentações são concisos e vão direto ao ponto, sem concessões para reminescências, com entrevistas sobre origens e opiniões. Em um dos últimos vídeos do Slayer com Hanneman, o DVD "Big 4", a banda sobe no palco ainda de dia diante de um estádio lotado na Hungria. Não há sequer uma bandeira da banda atrás da bateria: apenas um pano preto. Não há necessidade de nenhum artifício teatral: fogos, cenário, nada. Tom Araya quase não fala com o público, e nunca pede para que "pulem", "gritem" ou "cantem". Ele entra, dá boa noite, agradece, e a banda sai depois do massacre - problema de quem for tocar depois. É difícil superar um show do Slayer; é difícil superar um disco do Slayer. Poucas bandas conseguem ser mais violentas e assustadoras ao descrever o ritual de assassinos em série - seja no apartamento 213, seja em Auschwitz - e o perene derramamento de sangue pela guerra, pelo homicídio, pela ira de deus ou de satanás. O sangue que chove do céu no cataclisma tirado da bíblia; o incesto e a sodomia; o cheiro de carne queimada por napalm. Slayer transformou esquartejamento em poesia em "Piece by Piece" e músicas como "Postmortem" fazem a temperatura do ambiente onde são tocadas baixar até o frio da gaveta de algum necrotério. Slayer causa nojo, repugnância, empolgação juvenil e a vontade de bater a cabeça na borda do palco ou destruir um cômodo da casa: qualquer coisa, menos indiferença. Em um vídeo da banda, "War at the Warfield", lançado em 2003, um fã é entrevistado é muito acertadamente diz o seguinte: "Slayer é a primeira emenda [da Constituição dos EUA]. Slayer é a liberdade de expressão. Slayer é separação entre igreja e estado".


Slayer é a descrição crua do que há de pior na humanidade e dos atos mais ignominiosos cometidos pelo ser humano: genocídios, assassinatos em série, guerra, fundamentalismo religioso. E tudo isso é feito sem o menor laivo de moralidade ou cagação de regra: a descrição é tão cortante e objetiva quanto os riffs compostos, em sua maioria, por Jeff Hanneman. Ao mesmo tempo em que narra, afronta, e como que diz: isso é o que somos. Mas não se fala apenas de insanidade e assassinato: o Slayer também se volta contra o governo e contra a tirania, o alistamento militar, a opressão. As letras pueris sobre magia negra foram deixadas na cesta de CDs das Lojas Americanas em 1992; hoje o Slayer é o que toda banda punk pensou em ser e jamais conseguiu, com a distinta vantagem de soar infinitamente melhor.

É o que o destino reservou para uma banda que já usou maquiagem e era para se chamar "Dragonslayer". Mas não apenas o destino: também as capacidades de Jeff Hanneman. Eis, por exemplo, uma lista de dez solos memoráveis tocados por ele: http://rateyourmusic.com/list/benh_999/top_10_guitar_solos_by_jeff_hanneman

Consulte os encartes de seus CDs: ele escreveu quase tudo. Quase todas as letras, quase todos os riffs. "Angel of Death", um dos maiores clássicos, é dele. Jeff Hanneman É Reign in Blood, o clássico supremo do Slayer. Jeff Hanneman É o Slayer.


As notícias vão chegando, inclusive essa. Parece, afinal, que não foi uma morte tão prematura ou inesperada, para quem sabia das circunstâncias. Só se pode conjecturar o quanto ele precisou beber para se matar aos 49 anos - certamente é uma quantia proporcional à falta que o Slayer fazia em sua vida. E dificilmente haverá Slayer sem Jeff Hanneman. Eis aí um motivo de tristeza - e um cara que, certamente, não vai descansar em paz, mas inzonar o inferno.


terça-feira, 2 de abril de 2013

Metal sem fronteiras

É quase tautológico falar sobre como o heavy metal é um gênero que congrega seu público. Comparar as camisetas pretas de bandas às de times de futebol poderia parecer também uma obviedade - mas não é. No futebol, infelizmente, o sentimento de compartilhar uma experiência maior (o próprio jogo, a ida ao estádio), independentemente da agremiação escolhida pelo torcedor se perdeu há muito tempo, talvez desde a longínqua época em que senhores iam ao estádio de casaca e chapéu e senhoras empunhavam sombrinhas no que era um evento social seguro, civilizado. Pois hoje um show de metal é muito mais seguro e civilizado do que uma partida de futebol, como o fiasco do Metal Open Air provou: mesmo com o cancelamento de vários shows na undécima hora, o público se comportou exemplarmente, e não houve violência nem vandalismo. O mesmo senso de pertencimento e comunhão que sumiu dos estádios de futebol é um dos caracteres que distingue o metal de outros gêneros musicais. 

Ainda que sirva apenas de anteparo à realidade para um adolescente, como é tão comum, a adesão ao metal gera tamanha camaradagem entre seus seguidores que o que poderia ser apenas um recurso de auto-afirmação juvenil se transforma em algo mais parecido com o alistamento voluntário e entusiasmado em tropas que vão lutar alguma batalha épica - como, de resto, tantas bandas de metal já descreveram, de maneira mais ou menos pueril. O metal também assimilou e aperfeiçoou a auto-referência benigna comum nos primórdios do rock'n roll. As canções eram sobre elas mesmas, sobre como aquele ritmo era empolgante e furioso, sobre como era bom estar com os amigos, tomar cerveja, se divertir etc. Do "shake, rattle and roll" ao "heavy metal is the law" e bordões semelhantes se passaram 25 ou 30 anos, mas exatamente como o rock possui defensores a esgrimir por sua pureza e genuinidade, o metal também tem seguidores fiéis, que respondem rapidamente e com convicção quando perguntados sobre se determinada banda "é" ou "não é" metal de verdade. A essa altura, a matéria da Vice inglesa sobre os os "cowboys metaleiros" de Botsuana já circulou algumas vezes pelas redes sociais. É uma preciosidade sociológica, pois nenhuma teoria acadêmica poderá explicar satisfatoriamente como e por que, em uma país africano de clima tropical, algumas pessoas atribuem tanta importância a se vestir inteiramente de couro preto. Bem, elas próprias respondem: "Metal is given very extreme respect and great dignity in Botswana" ("o metal é tratado com extremado respeito e grande dignidade na Bostuana"). 


 
"respeito e dignidade" 

"Fervor religioso" é outra expressão frequentemente aplicada ao culto do metal por causa de lealdade que beira o fanatismo - as fotos do ensaio da Vice e as declarações dos bechuanos "metaleiros" são muito eloqüentes. Se vestindo de forma tão aparatosa, o que eles querem, na verdade, é mostrar seu amor e admiração por um tipo de música que, eles sentem, os representa de alguma forma. E é assim desde sempre, seja na Bay Area nos anos 80, seja nos subúrbios de Londres um pouco antes disso, seja um pouco depois disso em qualquer grande festival como Donnington, Dynamo e mais recentemente Wacken e Sonisphere. Os coletes jeans repletos de patches do Annihilator e do Metal Church estão, para o ressurgente thrash metal clássico em Brasília, como as jaquetas de couro e lenços pretos para o vigoroso heavy metal botsuanês. Em uma noite em que trabalhei até mais tarde, fiquei a escutar clássicos do thrash metal (meu subgênero favorito) no youtube - isso foi antes de minha mulher me indicar o infinamente superior Grooveshark - e, acabada uma música, eu escolhia outra da barra lateral de "vídeos relacionados". Entre faixas do Atrophy e do Dark Angel, escolhi "Addicted to Mosh", de uma banda que eu não conhecia, chamada Violator. Pelo nome da banda e pelo título da música, pela capa do disco e profusão de pontas e cantos vivos da tipografia, imaginei que era uma banda americana dos anos 80 que tivesse lançado 3 ou 4 discos e desaparecido quando os grupos de Seattle puseram o metal na geladeira. Ao ouvir outras faixas, tive certeza - era thrash metal clássico e sem nenhuma firula, direto, produzido de maneira crua mas sem qualquer defeito grave, empolgante e poderoso, e feito com tanta honestidade que qualquer sensação de que se está diante de algo "datado" desaparece rapidamente. Pensei ter descoberto outra banda obscura entre centenas, milhares de outras que surgiram nos anos 80, lançadas pela Metal Blade ou Nuclear Blas para durar tão pouco - e meses depois me surpreendi ao constatar, lendo a Vice brasileira, que o Violator é de Brasília, DF, e existe apenas desde 2002, embora faça exatamente o mesmo som que empolgava as hostes metálicas há mais de 20 anos.


 


Igualmente alguns meses depois de ler a matéria sobre o metal em Botsuana, conheci o Stane. Quem compartilhou o link no Facebook foi um dos personagens da matéria da Vice, cuja singela alcunha é Deadman Demon Rider - e a empolgação dele quando compartilhei novamente e recomedei a meus amigos que ouvissem o metal de Botsuana não me surpreendeu, exatamente, pois é assim no metal. Palavras de ordem foram trocadas - "espalhe a palavra!", "metal acima de tudo", "stay metal" etc. - feitas recomendações de outras bandas do underground (disse ao Deadman para ouvir o Violator), e ele pediu ajuda para que o Stane seja divulgado. Bem, nem precisava ter pedido, sou tão empolgado com essas coisas quanto ele.  



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 O som do Stane, assim como o do Violator, é bom: honesto, genuíno e feito com evidente entusiasmo. A demo "Maintainers of Brutality", de 2009, tem 5 faixas. "BA II" lembra um pouco "Fade to Black", do Metallica, mas com menos dedilhados e mais porradaria. A instrumental "Brutality" começa com um groove de baixo e um riff meio "space rock", e tem uma estrutura que deve, em alguma medida, ser influenciada pelo afrobeat de Fela Kuti. A repetição das bases de andamento moderado tem algo que remete a aquela sonoridade, e todas as músicas da demo são estruturadas mais ou menos assim: nada de andamentos muito rápidos e basicamente a mesma levada de bateria, exatamente como nas músicas de Kuti. "Buried Alive" tem guitarras grandiosas no refrão e ecos de Iron Maiden, mas ainda com o andamento contido e sólido. "Stane on Stage" é, à moda de "Iron Maiden", "Metal Thrashing Mad", "Whiplash" e "Heavy Metal is the Law" o hino auto-referente, de auto-afirmação, a que toda banda de metal recorre em seus primórdios. A letra fala de agruras sociais e da música como escape, como não poderia ser diferente. A última faixa, "Kill", tem uma toada parecida com o Black Sabbath de Masters of Reality e lembra um pouco C.O.C. e bandas congêneres. 

 Concordei com um amigo que achou o som "inocente" à primeira audição, mas, escutando com mais atenção, percebe-se que o Stane faz mais do que diluir diversas influências em uma mistura aguada e pouco original: os elementos puramente africanos do som o tornam interessante e instigante, e os riffs são excelentes. A produção limitada não chega a prejudicar, mas as músicas certamente se beneficiariam de um melhor tratamento, especialmente o som da bateria (embora com "som de teclado", é claramente uma bateria de verdade, trigada, tocada por um baterista). 

A cena de metal em Botsuana não é a única aglomeração improvável de admiradores de som pesado. Em Cuba, diversas bandas lutam contra o isolamento e mantém o gênero vivo em condições mais do que precárias. No Iraque, durante o auge da guerra civil que se seguiu à invasão americana de 2003, havia uma banda de metal, a qual foi retratada em um documentário. Até no Afeganistão assolado pela repressão do Taliban o metal encontra espaço como escape da violência e instabilidade. Aparentemente, nenhuma fronteira geográfica, o clima, as precariedades da vida em zonas de conflito, em países subdesenvolvidos e ditaduras podem refrear o metal. As letras pueris que falam sobre balançar a cabeça e aumentar o volume dos amplificadores, afinal, são mais verdadeiras do que pode parecer.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Está morto o Captain Crawl



Dizer que o Captain Crawl foi uma espécie de super-herói da internet talvez seja exagero - ou talvez seja pouco, mesmo, considerando a estranha fase de transição, no que diz respeito a música, bandas e discos, pela qual passamos.

Fiquei muito triste quando meu grande amigo Pedro Gonzalez - que foi quem me ensinou que existia o Captain Crawl - me avisou, na semana passada, que o site havia deixado de funcionar. Ao invés de uma eficiente página de buscas (eu achei 3 de cada 5 discos que procurei, se fosse chutar uma média), lá há agora apenas um aviso dando conta de que "problemas legais" e pressão de grandes bandas e gravadoras forçaram o serviço a deixar de existir.

No aviso, diz-se que uma das "bandas grandes" a reclamar seria o Coldplay - e se eu já achava o som deles uma bosta, agora passei a ter razões pessoais para odiá-la.

O Captain Crawl não provia conteúdo - pelo menos não diretamente. Era um "search engine" que buscava, em blogs, não apenas arquivos compactados contendo discos inteiros, mas resenhas, vídeos e artigos sobre música. Para quem tem preguiça de utilizar serviços de "torrent" (o que envolve algumas pentelhações de configuração etc.) é (era) a melhor coisa depois do Napster. Aliás, o sistema de blogs que direcionam para arquivos armazenados nos 4shared da vida - do qual o Captain Crawl era uma espécie de pedra de roseta - resgatam um pouco (ainda que muito pouco, admito) da experiência de ir a uma boa loja de discos. Raramente encontrei um post que apenas direcionasse a um link do magaupload ou congênere. Não raro, há (havia) excelentes resenhas do disco em questão, vídeos, links para outros textos, fotos e muito material interessante. Muitos desses blogs disponibilizam apenas material raro e que não havia sido lançado em CD (a exemplo do também finado Loronix), o que torna a atividade mais "legítima" aos olhos de SOPAS e PIPAS da vida. Afinal, se o download não concorre com um disco que está nas prateleiras da lojas, ninguém está perdendo.

Aliás, se alguém está perdendo é o artista ou seus sucessores, no caso de discos velhos e raros, na medida em que não recebe royalties pelo disco - que não está sendo vendido porque não é mais editado. Culpa, portanto, da gravadora.

Tudo isso, entretanto, está virando uma discussão superada e destinada a rodas de saudosismo de pessoas que ainda se lembram da época em que não existia internet, quando o monopólio da distribuição de música era das gravadoras e - ao menos nos países sérios - o artista podia viver regiamente só dos royalties de seus discos. (No Brasil, é, aparentemente, outra história. Lobão e Tim Maia sempre disseram que nunca recebiam o que deviam receber). Agora, a mamata acabou.

É verdade que "o artista deve ir onde o povo está", e o grande beneficiário dessa mudança no esquema das coisas é justamente o povo, o público de bandas e artistas ainda em atividade (a exemplo do próprio Coldplay, um dos responsáveis pela morte do Captain Crawl) e que precisam pagar as contas e, no mais das vezes, manter um estilo de vida nababesco e acostumado a polpudos cheques mensais preenchidos pelas recém-extintas gravadoras.

Já é possível fazer um balanço do impacto do fim dos direitos-autorais-enquanto-grandes-cheques. Até mesmo o Mark Farner, há anos fora do Grand Funk Railroad e fazendo shows nos quais toca os clássicos da banda com um bom grupo de apoio, veio ao Brasil, e tocou em mais de uma cidade. O Metal Open Air propiciou a muitas bandas de metal de porte médio como Sodom e Exodus verdadeiras tous sul-americanas, com várias datas no Brasil, shows na Bolívia, Colômbia, Peru etc. Bod Dylan tocou por aqui a nada módicos R$ 900,00. Chick Corea, os JB's e Maceo Parker vão tocar em São Paulo em Junho.

Mais do que isso, é possível acompanhar pelo twitter a rotina alucinada de shows de bandas veteranas como Anthrax (30 anos de carreira e 10 discos) e Sepultura (25 anos de carreira e 12 discos), narradas pelos seus integrantes de maneira quase sempre bem-humorada: passagens constantes em alfândegas, jet-lag permanente, desfrute de duas estações do ano na mesma semana etc.

A título de comparação, ainda que grosseira, pela lei brasileira homens podem se aposentar após 35 anos de contribuição - raros são os exemplos de quem, a tão pouco tempo de parar, esteja trabalhando tão duro, como se ainda estivesse no começo da carreira.

Mas, de certa forma, é como se estivessem - e tivessem que refazer o longo caminho que, um dia, os fez chegar ao ponto em que gordos cheques mensais parece que iriam garantir sua tranquila (e precoce) aposentadoria, fazendo shows apenas por diversão, quando lhes desse na telha. Talvez esse fosse o sonho dourado do Coldplay, frustrado pelas radicais mudanças ainda em curso e que, aparentemente, vão obrigar os artistas a trabalhar muito mais do que imaginavam quando se convenceram, no curso de sua carreira, da própria genialidade.

Como as fitas Betamax, A-tracks, MD's e outros formatos que foram engolfados por outras tecnologias, o Captain Crawl foi uma baixa da guerra pelos royalties e pela prevalência da lei do menor esforço pretendida por certos artistas (convencidos de sua genialidade, ou simplesmente por má-fé e preguiça) e pelas gravadoras (de olho nos lucros). Por mais saudade que deixe, é um mártir da idéia de uma nova relação entre artistas e o público - ou nem tão nova assim. Já houve um tempo, muito antes da internet, em que sequer discos existiam, e o artista realmente ia onde o povo estava ou morria de fome. O retorno a essas tradições não será benéfico apenas para o público, mas também para as bandas: quem há de achar ruim viajar o mundo com tudo pago, ficando em hotéis entre ótimos e razoáveis, tocando suas próprias músicas e recebendo por isso? Além disso, shows frequentes mantém os músicos com os cascos afiados, sendo sempre lembrados por seu público e com melhores chances de conquistar novos fãs.

No fim das contas, é vergonhoso para o Coldplay figurar como algoz do Captain Crawl. Diz muito sobre uma geração que atribui importância demais a si própria, pouca a seu público e a uma verdadeira ética de trabalho. Sobretudo é ridículo pois a mudança contra a qual o Coldplay e as gravadoras se insurgem é irrefreável. Ainda não se chegou a uma solução definitiva para a questão do formato (ou ausência dele) e talvez isso nunca seja obtido. O fato é que, para ganhar a vida, as bandas agora vão ter que fazer isso ao vivo, sem intermédiários, e onde quer que se pulico esteja.

Quanto ao Captain Crawl, se ele fosse um super-herói, teria poderes de localizar discos perdidos em arquivos empoeirados de gravadoras e selos que não existem mais, mostrando o caminho aos interessados - isso até tombar pela kriptonita dos Lex Luthors entronizados em escritórios de empresários e atravessadores. Mas, não tema: de uma maneira ou de outra, e igualzinho so Super Homem, ele voltará.

segunda-feira, 12 de março de 2012

As so(m)bras do metal

Poucos gêneros musicais evocam devoção quase religiosa de seus adeptos - por mais que a música seja importante na vida de um indivíduo, é incomum que se veja gente fazendo questão de usar camisetas do U2, do Black Eyes Peas, Beyonce ou qualquer outro fenômeno musical mais "mainstream". E você pode não conseguir consertar um telefone celular Blackberry ou dispor do melhor tratamento médico em Curitiba, mas vai achar a camiseta de praticamente qualquer banda de rock que se preze em uma claustrofóbica loja na rua Marechal Floriano, quasa na Praça Tiradentes, ao lado do finado Hotel Eduardo VII.

O metal, embora já tenha sido mais popular, continua vigoroso após muitos anos de discussão sobre a origem do termo "heavy metal". No encarte de uma das versões remasterizadas de "Master Of Reality", o redator faz questão de esclarecer que a expressão não era comum na época em que o Black Sabbath puxava a fila do som pesado à base de afinações mais graves e riffs tétricos. Outros atribuem a gênese do heavy metal ao Led Zeppelin (por causa de "Immigrant Song"); há ainda quem se recorde que o Steppenwolf teria cunhado a expressão na letra da cansada "Born to be Wild".

Seja como for, o fato é que há, ainda hoje, bandas com 30 anos de atividade lançando discos com alguma regularidade e - o que é ainda mais relevante - excursionando o mundo todo tocando músicas de discos gravados em 1986 para platéias repletas de gente que não havia nem nascido quando essas músicas foram compostas.

Recentemente, o "Big 4", tour que reuniu os autoproclamados "grandes" do thrash metal (Metallica, Megadeth, Slayer e Anthrax), trouxe o metal de volta às páginas da Rolling Stone, entrevistas no GNT e menções na revista Veja. O metal, talvez mais do que qualquer outro gênero, foi o que talvez mais tenha beneficiado os fãs com a radical mudança - ainda em curso - dos meios de distribuição de música.

Em síntese, o músico parou de ganhar dinheiro com discos e royalties, e precisa, mais do que antes, "ir aonde o povo está". Um festival de metal em São Luís do Maranhão, com vários dos maiores e mais tradicionais nomes do metal, corrobora essa assertiva.

Aliás, você consegue imaginar qualquer outro festival mais "convencional" realizado tão longe do eixo RJ-SP? Não, é claro.

Há algo muito eloquente a respeito da localização do Metal Open Air - e ouso dizer que guarda mais relação com a disposição do público a viajar longas distâncias do que com a proximidade da cidade aos EUA ou à Europa (é bem mais perto que SP ou RJ, afinal). E quem não se dispuser a ir ao Maranhão ainda poderá desfrutrar de vários shows que muitas das bandas escaladas para o festival farão em São Paulo, Rio, Curitiba - ou seja, em alguma calculadora a conta fechou: muitas pessoas da região de São Luís devem ir aos shows, assim como tantas outras que viajarão até lá e outras que, mesmo que não possam conferir todo o escrete de 20 bandas gringas (encabeçadas por Anthrax e Megadeth) e várias outras nacionais, vão comparecer aos shows da "rebarba", uma chance de as bandas divulgarem seu material e ganharem mais uns trocados, já que estão na região e a poucas horas de grandes centros onde há público.

Seria mais ou menos como se Stevie Wonder, Peter Gabriel, Axl Rose e Kate Perry passassem um mês no Brasil, tocando em casas noturnas em que cabem de duas a quatro mil pessoas, antes e depois do mais recente Rock In Rio - coisa inaudita, convenha-se.

Entretanto, outras regras se aplicam ao metal - há uma atmosfera quase circense em volta dos shows, e as bandas se orgulham (pelos mais variados motivos) de suas tradições de estrada. Mais ou menos como o próprio circo, parece não haver sentido para a existência de uma banda de metal se ela não viaja o mundo, constantemente, para se encontrar com o seu público.

Talvez não haja tradição no rock mais forte do que essa. Como a convocação de soldados para uma guerra, os shows de metal estão sempre lotados, e bandas como Testament e Exodus (expoentes do thrash metal excluídos do "Big 4") freqüentemente tocam no Brasil. Poucos gêneros musicais conseguem instilar em seus seguidores esse senso de pertencimento, do qual tanto o artista quanto o fã se alimentam.

No Metal Open Air, aliás, há metal para todos os gostos: desde o insistente duo canadense Anvil à reserva moral que é o Megadeth, passando pelo Anthrax (talvez, injustamente, o "menor" do Big 4) e por protagonistas de metal extremo como o Obituary, há todas as gradações de peso e agressividade no festival. Mas, diferentemente do que acontece em festivais que misturam Sepultura com Lobão, isso não gerará qualquer discórdia - porque, mal comparando o metal com o futebol, é como se todos os times fossem um só.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

"Xingue-os do que você é, acuse-os do que você faz".

A frase do título é habitualmente atribuída a Lenin. Confesso que nunca pesquisei para saber se há algum escrito seu em que o aforismo apareça, mas pouco importa: as práticas de detratores da democracia em sua luta pelo poder invariavelmente lançam mão desse expediente. No manjado "1984" isso é retratado pela "novilíngua", e Gramsci refinou os mecanismos de manipulação do discurso que tornaram a luta política algo parecido com aquele quadro televisivo em que uma pessoa deveria escolher entre uma mariola e um carro novo sem ouvir qual era a opção.

Esse recurso de retórica, ao lado de outros, é a própria linguagem dos regimes totalitários. Quando o ditador da Coréia do Norte morreu, há algumas semanas, a carta de condolências do PC do B foi uma das leituras mais hilariantes que apareceram. É tão delirantemente dissociada da realidade que só pode mesmo ter alguma função como piada - acho pouco provável que alguém a tenha traduzido para o coreano e entregue no "comitê central" do partido comunista norte-coreano. Seja como for, a linguagem daquele regime é a mesma: enquanto as pessoas morrem de fome porque não há comida para todos, as virtudes de um líder que mandava buscar as melhores iguarias onde quer que fossem encontradas em todo o mundo, e gastava quase um milhão de dólares por ano em conhaque Henessy, eram saudadas com superlativos que até mesmo no Brasil seriam considerados crime eleitoral. Bem, nao há eleições na coréia do norte...

A desocupação da favela paulistana do Pinheirinho, essa semana, deu ensejo a diversas manifestações contrárias ao cumprimento da ordem judicial pela polícia - e a uma nova interpretação e aplicação da Lei de Godwin, notável por sua larga abrangência. Essas manifestações foram coroadas por um infeliz "cartum" de Carlos Latuff: a suástica encimada por uma águia, símbolo utilizado pela alemanha nazista, foi alterada, e no lugar da águia, há um tucano de expressão iracunda.

Não deveria ser novidade. Todos os "cartuns" de Latuff são característicamente binários e simplistas. Seu traço pouco refinado, não por acaso, remete a histórias em quadrinhos de super-heróis (as quais, imagino, ele deve odiar, produto do "imperialismo" que são), com a diferença que até mesmo nesses enredos de fantasia há um pouco da complexidade moral do mundo real que Latuff pretende não existir.

Nos cartuns de Latuff sobre as guerras no Iraque e Afeganistão, por exemplo, soldados voluntários (não há convocação nos EUA desde a guerra do Vietnã) são retratados ora como ingênua massa de manobra, ora como cães-de-fila da indústria petrolífera. Latuff também comete diversos desenhos sobre os problemas palestinos. Um dos mais escandalosos transforma judeus em nazistas - com o requinte de retratá-los com o uniforme idêntico ao dos guardas de campos de conentração alemães. Latuff também saúda o Taliban e o Hamas como uma espécie de liga de super-heróis, em poses características, exaltando a violência e as práticas terroristas dessas organizações. O cartunista desfila habitalmente com uma keffiyah, espécie de cachecol notabilizado por Yasser Arafat, em volta do pescoço - a peça, largamente usada no oriente médio, ironicamente é utilizada também por soldados das forças especiais americanas e inglesas que lá atuam.

Para Latuff - que nutre, aparentemente, verdadeiro fetiche pela suástica - o massacre sistemático de seis milhões de judeus em câmaras de gás e fuzilamentos sumários, por um regime absolutamente insano, é a mesma coisa que os confrontos na faixa de gaza. Certamente, se confrontado, ele dirá que seus desenhos em nada diferem dos cartuns dinamarqueses que tiraram sarro das vertentes radicais do islã e seus homens-bomba - mas um labrador pouco inteligente nota facilmente a diferença.

Carlos Latuff flerta com o mesmo anti-semitismo grosseiro de que acusa meio mundo, do governador de São Paulo ao exército americano e aos próprios habitantes de Israel. Para Latuff, o cumprimento de uma ordem judicial, dependendo de contra quem for dirigido, equivale a nazismo - um regime que causou o maior conflito armado de que o mundo tem notícia, e produziu 73 milhões de mortos ente militares e civis.
Nem seria preciso lembrar da crueldade fetichista do nazismo, da qual Latuff parece não ter notícia: esterilizações em massa, assasinato sistemático de ciganos, homossexuais, judeus, poloneses etc.

Para Latuff, a desocupação por ordem judicial de uma favela é a mesma coisa que o massacre perpetrado pela SS em Oradour-sur-Glane.

Para Latuff, a troca de agressões entre judeus e palestinos iguala os primeiros, ao se defenderem, aos grupos de extermínio nazistas que fuzilavam sumariamente mulheres e crianças no gueto de Varsóvia.

Seus cartuns são reveladores de uma mente atrofiada e fetichista, segundo a qual o mundo é dividido apenas entre oprimidos e opressores, sem quaisquer considerações sobre o contexto em que os acontecimentos se dão. A mentalidade de Latuff ignora as gigantescas estruturas construídas no ocidente que garantiram, por exemplo, que a discussão sobre a desocupação da favela Pinheirinho se desse sob o devido processo legal - não se trata, é evidente, do arbítrio e da força militar da Waffen-SS.

Carlos Latuff, se um dia tivesse poder, faria com seus opositores tudo aquilo que ele gosta de dizer que é feito contra aqueles que gozam de sua simpatia - sem penasr duas vezes. O maior sintoma disso é ele ter posto suas habilidades ao serviço de uma "causa" de maneira tão escandalosa. Sua visão obtusa e simplista, que venera a violência, é profundamente antidemocrática. Fico a imaginar o que ele pensa ao assistir "Gritos do Silêncio" - deve torcer pelos ossos.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Anthrax

No "Big 4", o Anthrax foi a banda de abertura - o que pode ser considerado injusto, dependendo de pra quem você pergunte. Há muita gente que diria que eles deveriam encerrar a noite.

Como a música em praticamente qualquer gênero acaba imiscuida com aspectos corporativos e mercadológicos, foi o Metallica a fechar a noite em shows que devem ter sido veradeiramente incríveis - se começa com Anthrax, o que pode vir depois?

O Metallica operou a transição entre "And Justice For All" e o "Disco Preto" (como se todos os discos não fossem pretos); o Megadeth lançou "Rust in Peace" e seguiu na cola do "Preto" com o excelente "Countdown to Extinction" - depois disso, as duas bandas se perderam um pouco. É verdade que o Megadeth custou mais a se perder - ainda teve "Youthanasia" e "Cryptic Writings" antes do grande fiasco "Risk", uma tentativa de tornar o som mais comercial com a produção de Dann Huff, uma espécie de Rick Bonadio da música caipira (no mau sentido) americana. O Metallica começou a desandar logo depois do "Disco Preto", com "Load" e "Reload", discos que embora não sejam ruins, não fazem justiça ao material que a banda havia até então produzido. E não se trata apenas dos riscos de se "experimentar"; os dois discos têm poucas músicas realmente boas, soam como uma banda tentando deliberadamente fazer algo que não sabe; a mesma coisa aconteceu com o Megadeth em "Risk", uma diluição exagerada da sonoridade que, até então, vinha sendo conservada sob a formação mais duradoura que a banda já teve.

Sobram o Slayer e o Anthrax.

O Slayer é uma verdadeira reserva moral do thrash metal, jamais tendo decepcionado seu público com experimentações angustiadas ou trazendo a crise da meia idade para dentro do estúdio. O disco que mais se aproximou de um deslize foi "Diabolus in Musica", de 1998. Sob o impacto do chamado "nu metal" cometido por bandas como Korn e congêneres, essa sonoridade parece ter alguma influência sobre as faixas de "Diabolus". Poucas músicas desse disco são tocadas ao vivo pela banda - no show em Curitiba, em junho de 2011, apenas uma, a mediana (perto de "War Esnsemble" e "Catalyst") "Stain of Mind". Depois disso, o Slayer retomou a meada de grandes discos - a qual talvez nunca supere "Divine Intervention", o encontro do Slayer com uma sonoridade moderna, cheia e exuberante, muito mais viva que as mixagens agudas e magras dos discos de thrash metal dos anos 80.

Já o Anthrax teve uma trajetória mais parecida com a do o Black Sabbath, banda que é uma espéciede pedra de roseta do metal. O Black Sabbath, como todo mundo sabe, teve duas fases distintas: Ozzy e Dio, assim como o Deep Purple teve Ian Gillan primeiro e Coverdale/Hughes depois.

Em ambos os casos, os vocalistas da "primeira fase" (ou "Mk I", no caso do Purple), acabarabm voltando depois de muitas atribulações - o que aconteceu há mais tempo com o Deep Purple e muito recentemente com o Black Sabbath, que anunciou há pouco uma reunião da formação clássica que incluirá disco, tour e etc.

A mesma coisa aconteceu com o Anthrax.

Antes mesmo que Joey Belladona se notabilizasse como a voz dos primórdios do Anthrax, a banda teve outro vocalista - e outro baixista, Dan Lilker, o qual saiu e (felizmente) organizou o excelente Nuclear Assault. Com a saída do vocalista Neil Turbin - que gravou "Fistful of Metal" - o posto foi ocupado por Joey Belladona, um descendente mestiço de índios e italianos cujos vocais iam por uma linha mais aguda de metal clássico como Iron Maiden e Judas Priest. Com ele, o Anthrax gravou "Spreading the Disease", "Among the Living", "State of Euphoria" e "Persistence of Time", nos quais está o material verdadeiramente clássico da banda - Madhouse, Medusa, Caught in a Mosh, I Am The Law, Indians, In My World e outras.

Belladona saiu da banda e John Bush entrou; vieram "Sound of White Noise", "Stomp 442", "Vol. 8" e "We´ve Come for you All", o último lançado no longínquo 2003. Outra parte do material clássico do Anthrax está nesses discos - Only, Room for One More, Random Acts of Senseless Violence, Riding Shotgun, Inside Out - e as excelentes "Nobody Knows Anything" e "Refuse to be Denied", de "We´ve Come". Seja como for, talvez jamais sejam tocadas daqui em diante pelo Anthrax - Bush saiu de vez, Belladona voltou e adiantou que prefere não cantar músicas que o primeiro tenha gravado - mais ou menos como a rivalidade entre Ozzy e o saudoso Dio. No caso do Anthrax, há exceções: "Only", um dos maiores sucessos da banda, é frequentemente cantada por Belladona nos shows mais recentes.

O retorno do vocalista original foi fragmentado - a banda reuniu a formação clássica para shows em que "Among the Living" foi tocado do começo ao fim (entre 2005 e 2007), e depois Belladona declarou que sua participação se resumiria a isso, e se retirou mais uma vez. A banda então recruotu Dan Nelson, e o sacou logo em seguida para uma reunião com John Bush em 2009. Em 2010, Bush saiu definitivamente e Belladona voltou, e regravou os vocais de "Worship Music" (já gravados por Nelson), lançado em 13 de setembro de 2011 - um hiato de 8 anos desde "We've Come For You All".

Mais ou menos como quando o Black Sabbath gravou o infame "Born Again", com Ian Gillan nos vocais - apenas um pouco mais confuso.

As similitudes param por aí - porque o Sabbath lançou material bastante decepcionante durante sua trajetória (com destaque para o mencionado "Born Again"), mas o Anthrax não.

Mesmo entre conturbadas mudanças de formação, a banda sempre gravou bons discos, os quais jamais padeceram da falta de vigor e entusiasmo que há tempos assombra o Metallica. As mudanças na sonoridade, é claro, são evidentes: com o ingresso de John Bush, a banda passou a adotar andamentos mais vagarosos, riffs mais espaçados; em um certo sentido, fundaram a vertente que Biohazard e outras bandas similares fizeram florescer. A velocidade de "Caught in a Mosh" passou a ser episódica, ao passo em que, naqueles primeiros discos, os andamentos pesados e mais arrastados é que eram a exceção. Entretanto, as músicas nunca deixaram de entusiasmar, e de ter uma pegada característica - distinguível mesmo entre as diferenças das eras de Belladona e Bush. O Anthrax nunca se pejou de trazer outros elementos para o seu som, como prova a parceria com o Public Enemy em "Bring the Noise" - mas jamais permitiu que isso o diluísse ou o tornasse irreconhecível.

A sonoridade dos discos gravados com John Bush não era imprevisível, mas uma evolução natural do som da banda - subordinada, em certa medida, ao timbre mais grave e estilo mais cadenciado do novo vocalista. Todos os álbuns gravados por ele são bons, e aquilo que não é memorável jamais soa como uma tentativa de emular o som da ocasião, ou fazer cover de si mesmo. Anthrax sempre soou como Anthrax; jamais perdido, jamais equivocado; sempre honesto.

A diferença na sonoridade do Anthrax das eras Belladona e Bush é tão perceptível quanto aquela entre "Vol. 4" e "Heaven and Hell" - é uma escolha difícil dizer qual é o melhor. A decisão acaba sempre tendo mais relação com memória afetiva do que qualquer outra coisa. No fundo, é uma benção que tanto o Black Sabbath quanto o Anthrax tenham lançado os discos que lançaram. "Among the Living" e "Persistence of Time" são marcos tão indeléveis quanto "Sound of White Noise" e "Vol. 8" - não há nada de errado, afinal, em preferir qualquer um deles.

Com o recente retorno de Belladona, a banda gravou o excelente "Worship Music", uma perfeita síntese da sonoridade criada pelo Anthrax ao longo de 30 anos. O vocalista regravou os vocais de Dan Nelson, e diz-se que houve alterações nas faixas para acomodar o amadurecido timbre de Belladona. No final das contas, pouco importa: "Worship" é um grande disco, um dos melhores a ser lançado em 2011 e penhor seguro de que o metal de verdade nunca morrerá.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Batalha dos Aflitos

Hoje na hora do almoço, assistindo o telejornal, reconheci um Oficial da PM do Rio de Janeiro que foi preso por acusações de corrupção. A matéria dizia apenas que ele era árbitro de futebol, mas nada sobre sua atuação mais célebre nos gramados.

E eu o reconheci justamente porque, naquela tarde, as câmeras instaladas no Campo dos Aflitos o filmaram, por horas, tentando controlar os jogadores que disputavam a última vaga (acho que era isso) na série A daquele ano, depois de lances polêmicos, expulsões, pênaltis cobrados e sucessivamente anulados, mais expulsões e outras anomalias.

Todos viram a eletrizante "Batalha dos Aflitos", que virou o documentário apropriadamente chamado "Inacreditável". Lembro da minha incredulidade com os acontecimentos naquela tarde. Minha mãe, que acompanha o futebol muito ocasionalmente, me telefonou e perguntou: "você está vendo isso?" - exatamente assim, sem se referir ao jogo ou ao canal em que ele passava, subentendido que eu sabia do que ela falava - e eu disse que sim, e ela disse que iria desligar e me ligar depois que a partida terminasse, quando quer que isso fosse.

Foi um espetáculo, a Batalha dos Aflitos. Uma dose forte daquilo que chamamos, meio de brincadeira, de "magia do futebol" - o imponderável, o acaso, a aleatoriedade que quase inutiliza o conjunto de regras do futebol e o transforma em outra coisa.

Em muitas ocasiões, os árbitros influem de maneira decisiva e sumária, com a eficiência de uma guilhotina em um lance rápido que decide a partida implacavelmente, como o juiz que não viu Maradona fazer o gol com a mão, ou o desgraçado que apitou o fim enquanto a bola cabeceada (ou chutada?) por Zico viajava para o fundo do gol.

Mas, na Batalha dos Aflitos, a agonia durou horas. Não foi um corte rápido e limpo. Torcedores do Grêmio e do Náutico ficaram pendurados no pincel enquando o jogo se degenerou em uma rixa, paralisado por horas.

Tudo poderia ter sido mais simples e menos épico, não fosse pela atuação ridícula do árbitro Djalma Beltrami. De certa forma e ironicamente, se ele fosse um bom árbitro - aliás, se ele fosse um bom homem - talvez a história de heroísmo daquele jogo jamais tivesse acontecido.

Aquele jogo renhido só virou uma "batalha" porque o árbitro permitiu. Eu não gosto de vaticinar e cagar regra, mas lembro de ter pensado, quando vi ele dar o primeiro passo para trás, acuado por um jogador, que aquilo não ia dar certo. E não deu - Djalma Beltrami expulsou todos os jogadores possíveis antes de ser obrigado a encerrar a partida por WO. Correu pelo gramado acuado por jogadores das duas equipes, como uma galinha cercada para ser abatida. Foi chutado, levou socos - e continuou sendo humilhado pelos jogadores por longo tempo, até que as coisas foram se acalmando.

Foi o próprio Djalma Beltrami que criou essa situação - para ele, para as torcidas do Náutico e Grêmio e para quem assistiu aquele jogo entre a agonia e a euforia. E isso tudo aconteceu apenas porque Beltrami é um frouxo, um homem sem caráter; leniente quando deveria, por seu ofício, ser rigoroso.

É evidente que o árbitro, sozinho ou com a ajuda de seus auxiliares, não pode fazer frente a 11 ou a 22 homens dispostos a lhe surrar - por isso mesmo é que ele exerce sua autoridade antes que isso aconteça. Além de organizar o jogo, aplicar as penalidades e disciplinar os jogadores, cabe ao árbitro impedir uma escalada que culmine, justamente, com a deterioração da sua autoridade dentro do campo. De certa forma, é muito parecido com o tipo de liderança militar que sargentos e oficiais devem exercer: por meio da disciplina e da imposição de respeito.

Mas o ábritro de futebol também é um pouco como um carcereiro: desarmado, cuida de um contingente de pessoas muito superior, está sempre em desvantagem numérica e apenas por meio de uma relação muito complexa com seus vigiados é que ele sobrevive e consegue, em última análise, levar a cabo o seu ofício.

Beltrami não soube fazer uma coisa nem outra: nem liderar, nem impor respeito; não conseguiu impedir que sua autoridade fosse questionada e, depois, desaparecesse.

Não é, portanto, grande surpresa que seja corrupto na sua profissão "verdadeira", a de Policial Militar. Tenete-coronel da PM do Rio, Beltrami comandava um Batalhão e, ao invés de coibir o crime, havia se imiscuído a ele, cobrando propinas para deixar de fazer o que deveria - de forma parecida com a qual não fez o que deveria ter feito na partida que se tornou uma "batalha".

Quando vi na televisão que ele foi preso porque é corrupto, não me surpreendi: é o que se pode esperar, afinal, do homem frouxo, sem caráter, descrente da própria autoridade, da finalidade e importância da sua ocupação.

Amigo da bandidagem que é, Djalma Beltrami vai apitar peladas no pátio da penita - mas certamente não vai errar como errou nos Aflitos, sendo o buraco, na cadeia, muito mais embaixo.