quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Esse Quam Videri

Em algum filme que vi, não consigo lembrar qual, um personagem descreve uma situação e diz que alguém teve um ataque de "self-righteousness". A tradução dessa expressão, na legenda, foi "farisaísmo". Não entendo nada da bíblia e não sou linguista, mas, na hora, aquilo fez sentido. Pelo pouco que consigo lembrar, "fariseus" eram um daqueles grupos religiosos que disputavam a primazia na Galiléia, na época de Jesus. E a vibe nessas disputas religiosas é sempre a mesma: prevalece o desígnio divino que cada grupo atribui a si, conforme uma interpretação peculiar das escrituras, ou algum fenômeno natural raro e tido como sinal divino etc. Saduceus, Fariseus e Macabeus disputavam a primazia de ser a religião "verdadeira" - como, de resto, acontece até hoje em praticamente toda religião monoteísta. "Fariseu" tem, entre cristãos (especialmente os que conhecem bem a religião), um tom pejorativo, mas não é nem esse o ponto.

"Farisaísmo" é a tradução perfeita de "self-rignteousness" exatamente porque, numa discussão sobre bases mais ou menos impossíveis de comprovar materialmente, toda a argumentação se transforma em auto-indulgêcia: o "sim porque Deus quis" que, materialmente, é o mesmo que  "sim porque sim".

Gente realmente qualificada já escreveu sobre isso, mas qualquer semelhança entre isso e ideologia e ativismo não é apenas coincidência. Ativismo e proselitismo religioso são a mesma coisa.

Ora, o religioso que bate na sua porta e promete o paraíso (caso você se filie àquela religião) não tem como, materialmente, comprovar tudo o que ele está dizendo - tem? Não, não tem. É o mistério da fé etc.

A mesma coisa acontece com o ativista. O ativista, assim como o proselitista religioso, quer mudar alguma coisa. O proselitista religioso se contenta em ganhar ovelhas para o rebanho - para pagar dízimo, aumentar a frequência da igreja, fazer boas ações etc. Para ganhar essas ovelhas, o proselitista religioso precisa mudar alguma coisa, sim: ele precisa convencer o destinatário das suas mensagens a acreditar naquilo que ele promete (e que nunca é de graça: é preciso ter fé, orar, fazer o bem etc.). Se o proselitista consegue fazer isso, sua missão está cumprida.

Com o ativista, é um pouco diferente. O ativista quer mudar alguma coisa, mas não é só a sua cabeça: é "a sociedade", "o mundo", "as coisas", "o sistema". Não que ele também não tente convencer outros indivíduos; mas, para o ativista, é o aspecto coletivo muito mais importante que o individual.

O que há em comum entre os dois, ativismo ideológico e proselitismo religioso, é a impossibilidade material de provar o acerto das propostas que denfendem: o proselitista não consegue provar que existe um paraíso no além; o ativista não consegue provar que pode existir um na terra. Em nome de ambas as coisas também já se derramou bastante sangue e muitas pessoas sofreram - no entanto, as pessoas não desistem de tentar ter razão e invocar para si o monopólio da certeza do que é melhor - não apenas para si próprias, mas para todos os seus semelhantes. E isso é feito, no caso do ativismo, sob um "escudo ético" (expressão emprestada de Frederico Pernanbucano de Mello, autor do estupendo "Guerreiros do Sol") de se estar pretendendo "fazer o bem", ou "melhorar a sociedade" ou, ainda, "corrigir injustiças". No clima de relativismo moral que sempre foi típico da cultura brasileira, essas coisas vicejam com ainda mais facilidade - especialmente agora que vivemos na era do "pobre quando come melado se lambuza" como justificativa para qualquer malfeito cometido no governo, já que o é sempre "pelo bem dos pobres" ou no curso da melhoria da vida destes.

Por enquanto, esse tipo de ativismo rendeu um bom dinheiro para seus protagonistas mais bem colocados: blogueiros ditos "progressistas" que são sabujos do governo; donos de "ONGs" com ligações partidárias; profissionais de exegese e hermenêutica da Lei Rouanet. Quem ainda não conseguiu uma "boquinha" - por incompetência ou por algum pejo - passa o dia na internet pedindo doações enquanto entoa loas a si próprio, explicando como é tolerante, magnânimo, superior à moral amesquinhada da "classe média", da "grande mídia", "da igreja" e de outras grandes entidades abstratas - que são apenas sparrings retóricos sobre os quais essas pessoas, no mais das vezes, pouco ou nada sabem a respeito.

Veja o exemplo d'O Escritor que pretende ensinar tudo: desde quanto e o que consumir, a como ter relações sexuais e arrumar a casa. Para ele, todas as convenções sociais são "prisões": orientação sexual, emprego, casamento, aquisição de bens materiais etc. O sujeito é tão confuso que chega a se lamentar por não ser homossexual, argumentando que isso o "priva" de uma experiência mais completa da sexualidade. Ele, no entanto, vende palestras nas quais tenta convencer quem for incauto suficiente a pagar por isso a fazê-lo. E se explica: "sou mesquinho com minha sexualidade". Mas que belo espécime de super-homem, não só ele sabe o que é melhor para todos nós, ele também é capaz da auto-crítica!

O fenômeno se repete na tropa de "feministas de internet",  ativistas digitais que passam os dias a patrulhar em busca de ocorrências de opressão pelo patriarcado em todas as instâncias da vida. E elas se fundam em estatísticas - algumas, verdadeiramente estarrecedoras - para corroborar seus pontos de vista, como a ocorrência de um estupro a cada cinco minutos no Brasil (acho que era isso) ou o assassinato de aproximadamente uma dúzia de mulheres por dia, que pretendem transformar no crime de "femicídio". Há, também, recursos de argumentação e conceitos exclusivos das feministas, como "empoderamento" (na realidade, um neologismo que vem do anglicismo "empowering") e o fascinante conceito de "falsa simetria". A tal "falsa simetria" significa, a grosso modo, que se um homem e uma mulher sofrerem idêntico ato preconceituoso - digamos, não ser contratado em vaga de emprego por conta de serem, justamente, homem ou mulher - o homem sofrerá menos opressão pois, ao longo de toda a história, a mulher foi mais oprimida. A lógica é: um homem jamais deixaria de ser contratado por ser homem, logo, ele é menos oprimido, logo, não existe simetria possível para se comparar as agruras sofridas por homens e mulheres na internet.
O "conceito" teve seus dias de glória nos embates sobre aplicativos de avaliação de homens e mulheres (Lulu e Tubby), assunto que por dois ou três dias pautou as redes sociais. Indagada sobre a questão, uma internauta respondeu apenas "não pq falsa simetria", a panacéia retórica que encerra qualquer discussão entre opressores e oprimidas.

A questão, no fim das contas, é: o ativismo tem alguma finalidade, além de compor a personagem de quem o professa?

Há quem diga que sim, que a encheção de saco "cria awarness", faz as pessoas procurarem saber mais sobre questões importantes e, quem sabe, até deixarem de ser aquilo que o ativista deseje que elas deixem de ser - o que deve ser bom, já que ativistas só querem o bem de todos nós, não é mesmo?

Por outro lado, há uma máxima que é sempre repetida: "ninguém muda ninguém". Em discussões de internet, quando a incoerência de alguém é exposta, é comum que a discussão acabe rapidamente em um consenso: "não adianta apontar a incoerência de ninguém". E, de fato, é raro que alguém admita ter mudado de idéia.

Até acho que ativistas notórios tenham preocupação verdadeira com as causas sobre as quais professam - mas acredito mais ainda que a maior preocupação dele, do ativista de internet (veja bem: estou falando do ativista que fica o dia inteiro no computador, cagando regra, não daquele que põe a mão na massa e, silenciosamente, se dedica, diretamente, a qualquer causa), é parecer alguma coisa: parecer bom, parecer preocupado, parecer engajado. PARECER, apenas. E isso me lembra sempre o lema da faculdade de música de Berklee, instituição na qual, quando era adolescente, sonhei em estudar: ESSE QUAM VIDERI. Tanto quanto a tradução de "self righteousness", a expressão fazia, pra mim, todo sentido: "SER, AO INVÉS DE PARECER" era o lema da universidade. Estudar profundamente música, conhecê-la e dominá-la, ao invés de apenas parecer um músico. Isso fazia muito sentido. Mais do que conhecer o jargão ou passar a tarde em lojas de instrumentos musicais, ser músico era conhecer música profundamente, estudá-la: não apenas parecer um músico.
Com o ativista de internet acontece, curiosamente, o contrário. Se ele for pego em uma incoerência, invariavelmente vai reagir acusando de inveja ou ódio, ou os dois. "Ódio gratuito", "haters gonna hate" etc. Se você discorda de um homossexual, é homofóbico. Se discorda de uma feminista, é machista, e por aí vai. E o assunto pode ser o mais trivial, como uma receita de bolo. O deputado Jean Willys, todos lembram, foi flagrado gastando verba parlamentar para pagar cervejas bebibas por ele na beira da praia - e acusou de homofóbicos todos os que cobraram dele uma explicação.

Essas são as demonstrações mais eloquentes de que se trata de uma cultura de aparências: o deputado, nem quando flagrado malversando dinheiro público, deixou de lado seu ativismo. Não se preocupou em ser taxado de "ladrão" tanto quanto em deixar de ser um ativista. O mesmo acontece com outros exemplos de ativistas de internet, os quais mantém outras atividades que não o ativismo e, quando confrontados sobre a falta de qualidade de seu trabalho, se saem com a acusação de machismo, racismo, homofobia ou algum outro tipo de "preconceito".

Isso poderia ser sintomático de arrogância, de pessoas que tem tanta certeza de ser infalíveis que qualquer crítica só poderia vir de uma mente preconceituosa - mas é mais complicado do que isso. De maneira mais ou menos consciente, todo ativista sabe que o ativismo deve, sempre, ser a aparente questão central da existência. Não se admite nenhum desvio: a causa exige empenho sempre, 24 horas por dia, 7 dias por semana. Pode olhar: todos os ativistas tem isso em comum, não falam de outra coisa e, se falam, é sempre de maneira a relacionar o assunto com a causa e o ativismo (mesmo maltratando a lógica no processo).

Nesse passo começam a pipocar semelhanças com outras coisas - e embora ativistas de internet sejam, hoje, mais um motivo de troça do que qualquer outra coisa, é de se pensar o que fariam se conquistassem, um dia, poder de verdade.

Não tenho a menor dúvida que alguns deles fuzilariam, sem pensar, seus adversários - e pode apostar que o fuzilador teria mencionado "democracia" e "tolerância" em sua timeline muito mais vezes que o fuzilado.




terça-feira, 15 de outubro de 2013

Procure saber (onde está o dinheiro)

Isso certamente passa pela cabeça de Paula Lavigne e dos artistas representados por ela no mesmo ritmo que as quantias de royalties recebidas por eles diminuíram na última década. No caso da empresária, deve ser ainda mais preocupante já que ela, em tese, fica com apenas parte daquilo que seus clientes recebem - ou recebiam. O mp3 acabou aos poucos com os "formatos físicos", e hoje ninguém mais é obrigado a comprar o disco para ouvir as músicas. Aquela que era a principal fonte de renda dos artistas secou - é verdade que figuras como Lobão sempre disseram que o dinheiro vinha mesmo dos shows, eis que as gravadoras roubavam tudo para elas, e talvez as coisas no Brasil fossem um pouco menos organizadas e transparentes do que em outros lugares. Tim Maia era outro que se queixava.

Seja como for, é interessante notar como em alguns gêneros musicais as coisas mudaram - aliás, para benefício dos fãs. Quem achava que veria o Black Sabbath praticamente original reunido, sendo que claramente nenhum deles - talvez o Geezer - tem condições para isso? Quem achou que teria tantas chances de ver o Iron Maiden ao vivo? Ou, ainda, tantas e tantas bandas sendo reativadas, fazendo shows comemorativos de seus discos mais importantes etc? É ótimo para quem gosta de rock e metal ter tanta chances de ver suas bandas favoritas ao vivo. Mas o que será que as bandas e seus integrantes pensam?

Todas essas pessoas pensavam que, com 50 ou 55 anos, estariam aposentadas, vivendo dos rendimentos de enormes pilhas de dinheiro que se acumulavam todo mês, resultado da venda de milhões e milhões de discos, direitos autorais pela execução em rádio e TV etc. Poderiam cultivar seus hobbies em paz, viver sem preocupações e, além disso, manter o padrão de vida nababesco de rockstars. Veja a casa onde morava o vocalista do Metallica, por exemplo, e imagine apenas o custo de manter a grama aparada. Veja, também, aquele programa "Cribs" da MTV americana e, enfim, #procuresaber (hehehehe) algumas histórias folclóricas que flutuam por aí sobre gastos ridiculamente altos que artistas populares podem se dar o luxo de fazer.

Imagine o mau humor de algumas dessas pessoas quando perceberam que teriam que trabalhar até o fim da vida, como um blue collar qualquer? Pois é exatamente o que está acontecendo, e há muito choro e ranger de dentes. No campo do rock pesado arrisco dizer que um pouco menos - há reclamações mais ou menos frequentes sobre o impacto da distribuição digital descontrolada sobre o negócio da música, mas as bandas seguem fazendo extensas tours e voltando com freqüência ao Brasil, sempre com bastante profissionalismo e aparentando gostar do que estão fazendo.

Efeito similar certamente é sentido por Paula "Horseface" Lavigne e sua turma. Aliás e como já se disse, especialmente por ela, já que, além de fazer barracos e ser rude (como, reza a lenda, todo bom produtor deve fazer), ela é que cuida do dinheiro do Caetano e atua num negócio cuja principal mudança foi a pulverização das fontes de dinheiro de seus clientes.

Primeiro mexeram no ECAD, que até outro dia era suficiente para  "arrecadar" (qualquer um sabe que isso é uma piada) direitos autorais. A taxa de administração cobrada pela autarquia foi diminuída, além de outras alterações que fazem sobrar mais dinheiro para o artista. Fazia bastante tempo que o ECAD era problemático, um verdadeiro ralo de dinheiro sem nenhuma fiscalização - mas foi uma CPI que propôs a criação de uma nova lei para reestruturar o órgão e parar com a roubalheira. Paralelamente, tramitou uma proposta de emenda constitucional para isentar de impostos CD's e DVD's de artistas brasileiros (e também músicas compradas online). A "PEC da música" foi aprovada; o projeto de lei de resstruturação do ECAD ainda não.

Ambas as iniciativas foram encampadas pelo "#Procuresaber" de Paula Lavigne, e, na esteira do sucesso das mudanças, também passou a se discutir sobre biografias. O grupo liderado pela ex-mulher de Caetano é contrário à publicação desautorizada de biografias para serem vendidas - e usa como principal fundamento o art. 20 do Código Civil, o qual dispõe o seguinte:

"Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais".

O comando poderia ser redigido com mais clareza, é verdade. Afinal, alguém sempre poderia dizer que "a exposição ou utilização da imagem" tem um sentido mais estrito (como o direito de imagem do jogador de futebol) do que a interpretação corrente. Isso sem falar da segunda parte do artigo, que condiciona a proibição à violação da "honra, boa fama ou a respeitabilidade" do sujeito e a destinação a "fins comerciais". 

As coisas não são tão simples quanto podem parecer. O que seriam "fins comerciais"? Depende.
Pelé disse que jamais associaria seu nome ao de uma bebida alcoólica e, no entanto, todos conhecemos a gloriosa CANINHA PELÉ.



A cachaça comprou do Pelé o direto de estampar seu rosto no rótulo e batizar o produto com o seu nome.
Quantas pessoas compraram a cachaça só por causa disso? É impossível saber. Certamente gente que gosta de cachaça mas não de futebol deve ter comprado - entre outras tantas hipóteses. Em suma, é difícil mensurar se foi ou não um bom negócio para a fábrica, mas provavelmente sim.

E biografias, não seriam como cachaças com rostos famosos no rótulo? Não vendem apenas por que se trata - justamente - de alguém conhecido, sobre o qual o público tem curiosidade?

É aí que a questão começa a ficar tortuosa. Em parte, a resposta é afirmativa. Aliás, falando em "cachaça" e em "futebol", um excelente exemplo é a biografia de Garricha escrita por Ruy Castro. Quem comprou o livro, comprou porque admira Garrincha, certamente. Mas não só: quem conhece (e gosta, é claro) do texto de Ruy Castro certamente também comprou o livro por isso. E isso porque não se trata de uma narrativa apenas da vida privada do anjo de pernas tortas, mas de todo o seu contexto, de sua vizinhança, de suas origens. Uma boa biografia jamais será totalmente ocupada do biografado - aliás, nas melhores delas o equilíbrio entre, digamos, "o pessoal e o profissional" impera.
É o que acontece em outra excelente biografia escrita por Ruy, a de Carmem Miranda. Ao mesmo tempo em que a vida pessoal de Carmem é descrita, as indústrias musicais e de entretenimento brasileira e americana também são - em profundo detalhe, com uma preciosa discografia indicada por Castro e abundância de fontes e material que diz respeito ao período histórico em que a biografada viveu.
A biografia de Casimiro Montenegro, escrita por Fernando Moraes, é outro exemplo interessante: é muito mais a história do ITA e do surgimento da engenharia aeronáutica no Brasil do que da vida pessoal de Montenegro.

A questão está aí: uma biografia só será digna de interesse quando a vida do biografado se entrelaçar, de alguma forma, com a história. O argumento segundo o qual a privacidade deve ser protegida a qualquer custo é bastante pedestre, na exata medida em que quem o utiliza sempre parte de uma premissa como "e se resolvessem biografar sua mãe?" É uma variante das discussões sobre segurança pública em que alguém defende a morte de bandidos, outro alguém diz que não é bem assim e o primeiro retruca "é porque não foi com você ou com algum familiar".

Bem, diferente do que acontece com assaltos e latrocínios, ninguém está sujeito a ser "aleatoriamente" biografado - graças, justamente, ao funcionamento do mercado editorial. Se não há potencial para o livro se pagar, ele não será lançado - da mesma forma que acontecia, antes, nas gravadoras: nenhuma delas investia naquilo que achava que não tinha potencial para primeiro se pagar e, depois, dar lucro. Caetanos, Gils e Robertos vivem da margem de lucro sobre o ingresso de seus shows, e ninguém põe reparo nisso. Eles fazem o show; recebem por isso. Um show precisa se pagar (local, equipamento, transporte, iluminação etc.); o músico precisa comer, o artista precisa manter seu padrão de vida. Ou alguém acha que o Roberto Carlos recebe o mesmo que o baterista da banda dele a cada show?

É claro que não. Por menos de centenas de milhares de reais ele sequer sai de casa. E é porque ele é uma pessoa tão pública, mas tão pública, que não se pode dar ao luxo de sair de casa pra tomar um café na esquina - é um jeito de viver. Foi a vida que ele escolheu. É o preço que ele pagou. E é por isso que ele pode navegar no Lady Laura. Se ele quisesse ser um funcionário público anônimo, ele também poderia, mas viveria com um salário de funcionário público, e anônimo.

Mas não é só o dinheiro. Também há pessoas riquíssimas mas anônimas, e cujas biografias não teriam interesse literário e muito menos mercadológico.

Então, como resolver o problema? A intimidade de artistas como Caetano e Lenine vale "menos" do que a de uma pessoa anônima?    

Talvez a questão pudesse ser resolvida, de um ponto de vista mais moral, mediante o seguinte silogismo: quem escolhe viver tão publicamente sacrifica (uma modalidade de renúncia tácita, talvez?) um pouco de sua intimidade em troca dos lauréis mais elevados que a sociedade confere a seus integrantes.

De um ponto de vista mais, er, "jurídico", é aquela velha hipótese de colisão: de um lado, o direito do biografado a ter sua vida privada a salvo dos curiosos; de outro, o direito à informação, considerando que ele surge quando o biografado possui notoriedade suficiente para justificar o interesse. Eu não poderia dizer melhor do que o juiz que não deu a liminar par ao João Gilberto contra a Cosac Naify (a decisão está contida em outra, aqui). E, na boa, o raciocínio destrói qualquer defesa do possível do #Procuresaber.
Queiram ou não queiram, Caetanos, Gils e Robertos transcenderam a história de vida exclusivamente pessoal, de "intimidade", e são parte da história do Brasil. Impedir que essa história seja contada é, sim, censura. Eventuais exageros e incorreções podem ser corrigidos e punidos, exatamente de acordo com o devido processo legal - aliás, nos termos de parte do art. 20 do CC. Todo o aparato para que mentiras sejam punidas já existe. Qual é, então, o problema?

Voltamos ao começo: o problema é dinheiro. Livros são caros, tem potencial de vender bastante - eles querem receber, afinal, entendem que a biografia só vende por causa do biografado: e isso pode ser verdade quando se trata de coisas bisonhas como "biografias" de Justin Bieber - quase a mesma coisa que um caderno Tilibra com ele na capa, ou uma lancheira. Ninguém comprou uma biografia dessas por causa da sua qualidade ou da notoriedade de quem a escreveu (e onde se lê "ninguém", me refiro a adolescentes histéricas que aprenderam a ler há pouco). E, ainda assim, é óbvio que Justin Bieber tem alguma relevância - ainda que seja de pouca duração e mais ligada às estatísticas do que à relevância musical e cultural.

Em suma, o argumento segundo o qual o art. 20 do CC impede o "estouro da boiada", e que sua mãe seja biografada mesmo que não queira, é totalmente furado - tanto quanto os argumentos de Paula Lavigne e as infelizes colocações feitas recentemente por ela e pelo resto da turma.

 


  

quinta-feira, 2 de maio de 2013



Está morto Jeff Hanneman, guitarrista e principal compositor do Slayer. Isso é triste por diversas razões. Hanneman era novo, tinha apenas 49 anos. A causa da morte pode levar a conjecturas sobre se ela foi, de fato, prematura ou apenas o desfecho previsível de um hábito arraigado - o qual, por sinal, ninguém sabe se era de fato um problema. Dizem que Hanneman era patrocinado pela cervejaria holandesa Heineken e tinha geladeiras personalizadas em casa com um estoque infindável da bebida. Isso pode ser só folclore; só se tem certeza sobre algumas guitarras empunhadas por ele em que a logo da Heineken tinha as letras trocadas para que se lesse "Hanneman".



Foi também uma morte inesperada, já que nada se sabia sobre a saúde de Hanneman - tirante o bizarro acidente que o manteve afastado do Slayer por um longo tempo. Picado por uma aranha marrom enquanto tomava cerveja na banheira, ao que consta ele demorou a tomar as devidas providências. Quando chegou no hospital, a necrose havia se agravado pelo ataque de uma bactéria rara, e o guitarrista quase morreu. Entrevistado a respeito no curso de sua recuperação, ele garantiu que estava bem pois Satã havia cuidado dele. Ultimamente, se especulava sobre seu retorno ao Slayer - na esteira da saída do baterista Dave Lombardo. Novamente, não se sabe.

Na verdade, não importa. Pouco se sabe sobre os integrantes do Slayer, as pessoas físicas. A banda nunca foi objeto de documentários sobre a sua história, jamais expôs ao público o seu funcionamento e suas agruras, como outros fizeram, com resultados mais ou menos constrangedores. Para o Slayer e seu público, bastavam os discos e os shows. Os vídeos das apresentações são concisos e vão direto ao ponto, sem concessões para reminescências, com entrevistas sobre origens e opiniões. Em um dos últimos vídeos do Slayer com Hanneman, o DVD "Big 4", a banda sobe no palco ainda de dia diante de um estádio lotado na Hungria. Não há sequer uma bandeira da banda atrás da bateria: apenas um pano preto. Não há necessidade de nenhum artifício teatral: fogos, cenário, nada. Tom Araya quase não fala com o público, e nunca pede para que "pulem", "gritem" ou "cantem". Ele entra, dá boa noite, agradece, e a banda sai depois do massacre - problema de quem for tocar depois. É difícil superar um show do Slayer; é difícil superar um disco do Slayer. Poucas bandas conseguem ser mais violentas e assustadoras ao descrever o ritual de assassinos em série - seja no apartamento 213, seja em Auschwitz - e o perene derramamento de sangue pela guerra, pelo homicídio, pela ira de deus ou de satanás. O sangue que chove do céu no cataclisma tirado da bíblia; o incesto e a sodomia; o cheiro de carne queimada por napalm. Slayer transformou esquartejamento em poesia em "Piece by Piece" e músicas como "Postmortem" fazem a temperatura do ambiente onde são tocadas baixar até o frio da gaveta de algum necrotério. Slayer causa nojo, repugnância, empolgação juvenil e a vontade de bater a cabeça na borda do palco ou destruir um cômodo da casa: qualquer coisa, menos indiferença. Em um vídeo da banda, "War at the Warfield", lançado em 2003, um fã é entrevistado é muito acertadamente diz o seguinte: "Slayer é a primeira emenda [da Constituição dos EUA]. Slayer é a liberdade de expressão. Slayer é separação entre igreja e estado".


Slayer é a descrição crua do que há de pior na humanidade e dos atos mais ignominiosos cometidos pelo ser humano: genocídios, assassinatos em série, guerra, fundamentalismo religioso. E tudo isso é feito sem o menor laivo de moralidade ou cagação de regra: a descrição é tão cortante e objetiva quanto os riffs compostos, em sua maioria, por Jeff Hanneman. Ao mesmo tempo em que narra, afronta, e como que diz: isso é o que somos. Mas não se fala apenas de insanidade e assassinato: o Slayer também se volta contra o governo e contra a tirania, o alistamento militar, a opressão. As letras pueris sobre magia negra foram deixadas na cesta de CDs das Lojas Americanas em 1992; hoje o Slayer é o que toda banda punk pensou em ser e jamais conseguiu, com a distinta vantagem de soar infinitamente melhor.

É o que o destino reservou para uma banda que já usou maquiagem e era para se chamar "Dragonslayer". Mas não apenas o destino: também as capacidades de Jeff Hanneman. Eis, por exemplo, uma lista de dez solos memoráveis tocados por ele: http://rateyourmusic.com/list/benh_999/top_10_guitar_solos_by_jeff_hanneman

Consulte os encartes de seus CDs: ele escreveu quase tudo. Quase todas as letras, quase todos os riffs. "Angel of Death", um dos maiores clássicos, é dele. Jeff Hanneman É Reign in Blood, o clássico supremo do Slayer. Jeff Hanneman É o Slayer.


As notícias vão chegando, inclusive essa. Parece, afinal, que não foi uma morte tão prematura ou inesperada, para quem sabia das circunstâncias. Só se pode conjecturar o quanto ele precisou beber para se matar aos 49 anos - certamente é uma quantia proporcional à falta que o Slayer fazia em sua vida. E dificilmente haverá Slayer sem Jeff Hanneman. Eis aí um motivo de tristeza - e um cara que, certamente, não vai descansar em paz, mas inzonar o inferno.


terça-feira, 2 de abril de 2013

Metal sem fronteiras

É quase tautológico falar sobre como o heavy metal é um gênero que congrega seu público. Comparar as camisetas pretas de bandas às de times de futebol poderia parecer também uma obviedade - mas não é. No futebol, infelizmente, o sentimento de compartilhar uma experiência maior (o próprio jogo, a ida ao estádio), independentemente da agremiação escolhida pelo torcedor se perdeu há muito tempo, talvez desde a longínqua época em que senhores iam ao estádio de casaca e chapéu e senhoras empunhavam sombrinhas no que era um evento social seguro, civilizado. Pois hoje um show de metal é muito mais seguro e civilizado do que uma partida de futebol, como o fiasco do Metal Open Air provou: mesmo com o cancelamento de vários shows na undécima hora, o público se comportou exemplarmente, e não houve violência nem vandalismo. O mesmo senso de pertencimento e comunhão que sumiu dos estádios de futebol é um dos caracteres que distingue o metal de outros gêneros musicais. 

Ainda que sirva apenas de anteparo à realidade para um adolescente, como é tão comum, a adesão ao metal gera tamanha camaradagem entre seus seguidores que o que poderia ser apenas um recurso de auto-afirmação juvenil se transforma em algo mais parecido com o alistamento voluntário e entusiasmado em tropas que vão lutar alguma batalha épica - como, de resto, tantas bandas de metal já descreveram, de maneira mais ou menos pueril. O metal também assimilou e aperfeiçoou a auto-referência benigna comum nos primórdios do rock'n roll. As canções eram sobre elas mesmas, sobre como aquele ritmo era empolgante e furioso, sobre como era bom estar com os amigos, tomar cerveja, se divertir etc. Do "shake, rattle and roll" ao "heavy metal is the law" e bordões semelhantes se passaram 25 ou 30 anos, mas exatamente como o rock possui defensores a esgrimir por sua pureza e genuinidade, o metal também tem seguidores fiéis, que respondem rapidamente e com convicção quando perguntados sobre se determinada banda "é" ou "não é" metal de verdade. A essa altura, a matéria da Vice inglesa sobre os os "cowboys metaleiros" de Botsuana já circulou algumas vezes pelas redes sociais. É uma preciosidade sociológica, pois nenhuma teoria acadêmica poderá explicar satisfatoriamente como e por que, em uma país africano de clima tropical, algumas pessoas atribuem tanta importância a se vestir inteiramente de couro preto. Bem, elas próprias respondem: "Metal is given very extreme respect and great dignity in Botswana" ("o metal é tratado com extremado respeito e grande dignidade na Bostuana"). 


 
"respeito e dignidade" 

"Fervor religioso" é outra expressão frequentemente aplicada ao culto do metal por causa de lealdade que beira o fanatismo - as fotos do ensaio da Vice e as declarações dos bechuanos "metaleiros" são muito eloqüentes. Se vestindo de forma tão aparatosa, o que eles querem, na verdade, é mostrar seu amor e admiração por um tipo de música que, eles sentem, os representa de alguma forma. E é assim desde sempre, seja na Bay Area nos anos 80, seja nos subúrbios de Londres um pouco antes disso, seja um pouco depois disso em qualquer grande festival como Donnington, Dynamo e mais recentemente Wacken e Sonisphere. Os coletes jeans repletos de patches do Annihilator e do Metal Church estão, para o ressurgente thrash metal clássico em Brasília, como as jaquetas de couro e lenços pretos para o vigoroso heavy metal botsuanês. Em uma noite em que trabalhei até mais tarde, fiquei a escutar clássicos do thrash metal (meu subgênero favorito) no youtube - isso foi antes de minha mulher me indicar o infinamente superior Grooveshark - e, acabada uma música, eu escolhia outra da barra lateral de "vídeos relacionados". Entre faixas do Atrophy e do Dark Angel, escolhi "Addicted to Mosh", de uma banda que eu não conhecia, chamada Violator. Pelo nome da banda e pelo título da música, pela capa do disco e profusão de pontas e cantos vivos da tipografia, imaginei que era uma banda americana dos anos 80 que tivesse lançado 3 ou 4 discos e desaparecido quando os grupos de Seattle puseram o metal na geladeira. Ao ouvir outras faixas, tive certeza - era thrash metal clássico e sem nenhuma firula, direto, produzido de maneira crua mas sem qualquer defeito grave, empolgante e poderoso, e feito com tanta honestidade que qualquer sensação de que se está diante de algo "datado" desaparece rapidamente. Pensei ter descoberto outra banda obscura entre centenas, milhares de outras que surgiram nos anos 80, lançadas pela Metal Blade ou Nuclear Blas para durar tão pouco - e meses depois me surpreendi ao constatar, lendo a Vice brasileira, que o Violator é de Brasília, DF, e existe apenas desde 2002, embora faça exatamente o mesmo som que empolgava as hostes metálicas há mais de 20 anos.


 


Igualmente alguns meses depois de ler a matéria sobre o metal em Botsuana, conheci o Stane. Quem compartilhou o link no Facebook foi um dos personagens da matéria da Vice, cuja singela alcunha é Deadman Demon Rider - e a empolgação dele quando compartilhei novamente e recomedei a meus amigos que ouvissem o metal de Botsuana não me surpreendeu, exatamente, pois é assim no metal. Palavras de ordem foram trocadas - "espalhe a palavra!", "metal acima de tudo", "stay metal" etc. - feitas recomendações de outras bandas do underground (disse ao Deadman para ouvir o Violator), e ele pediu ajuda para que o Stane seja divulgado. Bem, nem precisava ter pedido, sou tão empolgado com essas coisas quanto ele.  



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 O som do Stane, assim como o do Violator, é bom: honesto, genuíno e feito com evidente entusiasmo. A demo "Maintainers of Brutality", de 2009, tem 5 faixas. "BA II" lembra um pouco "Fade to Black", do Metallica, mas com menos dedilhados e mais porradaria. A instrumental "Brutality" começa com um groove de baixo e um riff meio "space rock", e tem uma estrutura que deve, em alguma medida, ser influenciada pelo afrobeat de Fela Kuti. A repetição das bases de andamento moderado tem algo que remete a aquela sonoridade, e todas as músicas da demo são estruturadas mais ou menos assim: nada de andamentos muito rápidos e basicamente a mesma levada de bateria, exatamente como nas músicas de Kuti. "Buried Alive" tem guitarras grandiosas no refrão e ecos de Iron Maiden, mas ainda com o andamento contido e sólido. "Stane on Stage" é, à moda de "Iron Maiden", "Metal Thrashing Mad", "Whiplash" e "Heavy Metal is the Law" o hino auto-referente, de auto-afirmação, a que toda banda de metal recorre em seus primórdios. A letra fala de agruras sociais e da música como escape, como não poderia ser diferente. A última faixa, "Kill", tem uma toada parecida com o Black Sabbath de Masters of Reality e lembra um pouco C.O.C. e bandas congêneres. 

 Concordei com um amigo que achou o som "inocente" à primeira audição, mas, escutando com mais atenção, percebe-se que o Stane faz mais do que diluir diversas influências em uma mistura aguada e pouco original: os elementos puramente africanos do som o tornam interessante e instigante, e os riffs são excelentes. A produção limitada não chega a prejudicar, mas as músicas certamente se beneficiariam de um melhor tratamento, especialmente o som da bateria (embora com "som de teclado", é claramente uma bateria de verdade, trigada, tocada por um baterista). 

A cena de metal em Botsuana não é a única aglomeração improvável de admiradores de som pesado. Em Cuba, diversas bandas lutam contra o isolamento e mantém o gênero vivo em condições mais do que precárias. No Iraque, durante o auge da guerra civil que se seguiu à invasão americana de 2003, havia uma banda de metal, a qual foi retratada em um documentário. Até no Afeganistão assolado pela repressão do Taliban o metal encontra espaço como escape da violência e instabilidade. Aparentemente, nenhuma fronteira geográfica, o clima, as precariedades da vida em zonas de conflito, em países subdesenvolvidos e ditaduras podem refrear o metal. As letras pueris que falam sobre balançar a cabeça e aumentar o volume dos amplificadores, afinal, são mais verdadeiras do que pode parecer.