sexta-feira, 10 de abril de 2009

Leia "Despachos do Front"

Depois da terceira vez, tenho recomendado a vários amigos que leiam "Despachos do Front" quase com ânimo de um catequista. O mais chapado, acachapante, louco livro de guerra já escrito - sem exagero. Você chapa lendo o livro, e não é brincadeira nem modo de dizer.

O artigo da wikipedia é preciso: "one of the first pieces of American literature that allowed Americans to understand the experiences of soldiers in the Vietnam War".

E o livro é exatamente isso, quase ao ponto de glorificar a experiência toda. Certamente a experência de um correspondente em uma guerra é mais gloriosa que a de um soldado - se é que isso é possível, e é aí que há algum "debate" no livro sobre as circunstâncias maiores da guerra, maiores que a comida enlatada, o medo, o charlie, a superstição e nancy sinatra no USO de Saigon. A conclusão da guerra, ou o "resultado" dela está lá, é o fio condutor do livro, mas sem proselitismo - a grande graça de boas reportagens de guerra é essa, descrever situações pontuais sem espaço para grandes divagações e agenda ideológica. Convenha-se, aliás, que não é necessário afirmar que a guerra é uma coisa horrível se você simplesmente a descreve.

O livro é muito louco porque a guerra do Vietnam foi muito louca.

Guerra com todos os ingredientes perniciosos e detestáveis de sempre - mas com outros também. O repórter descreve um desembarque de helicóptero em um arrozal, uma subseqüente emboscada, o tiroteio e, de repente, começa a tocar "voodoo child" na selva, e é um soldado que retorna o fogo inimigo ao lado dele mas trouxe um aparelho de som portátil e soltou o som e disse: "já que estamos aqui nessa merda, melhor ouvindo isso, né?"

Tem a história dos Lurps, soldados que passavam 3 semanas embrenhados na selva em grupos de 4 a 6, só observando e recolhendo inteligênica - o repórter tem um divertido temor reverencial por esses soldados. Eu provavelmente teria também, como o soldado da infantaria regular tinha e parece que até charlie tinha ("charlie" era um dos apelidos do inimigo. As iniciais de Vietcong - VC - em alfabeto fonético são "victor" "charlie". Há uma explicação mais interessante no livro - leia! - mas era o apelido aparentemente mais utilizado). Um deles dá a receita para boa patrulha noturna: uppers antes, e downers durante (pílulas estimulantes e tranquilizantes, e nada de drogas ilegais: comprimidos que vinham no kit de primeiros socorros e nas mochilas dos paramédicos) os faziam enxergar no escuro e farejar o inimigo.

As fotos que vão nos links supra serviram pra ilustrar bem o que já é descrito lindamente no livro: o olhar duro, frio, destituído de juventude mesmo em rostos muito jovens, uma tranquilidade sinistra, mesmo com chances de morrer que, em casa, equivaleriam a ser atingido por um raio jogando futebol a cada dois dias, no mesmo lado do campo.

Helicópteros eram quase como táxis da selva. Entre uma matéria e outra, uma zona de pouso e outra, e depois outra, conseguir um helicóptero era quase como arrumar uma carona quando se sai a noite com um grupo de amigos, eles estavam todos indo e vindo o tempo todo, levando munição, trazendo mortos e feridos, entregando rações-C em um campo sitiado das forças especiais - a evolução natural do jeep. Além de tudo aquilo que acontece na seqüencia com "cavalgada das valquírias" no apocalypse now e o próprio som dos rotores como o prenúncio da redenção do soldado aterrorizado no meio da selva.

Depois de um dia inteiro em meio a operações de "busca e destruição", o repórter voltava para o Hotel Continental e, depois de vários conhaques e um baseado, dormia - sentindo cada soldado morto que ele havia visto (e não foram poucos) ali no quarto, junto com ele.

As histórias dos soldados que lá estavam, histórias de gente simples, jovem, que passou pelo inferno durante um ano (no mínimo) não porque se voluntariou, mas porque foi convocada - são histórias que devem ser, sempre, contadas. É fácil se horrorizar com a guerra, difícil é fazer uma boa descrição de primeira mão. Isso todos os livros dessa coleção, cada um a sua maneira, fazem. Mas o do Michael Herr é especial.

É a mistura do material (a própria guerra do vietnam) com o talento do repórter. O material, reconheça-se, é esplendido - woodstock, 68, saigon, fumo, o horror. A guerra continua sendo uma merda - mas essa foi uma merda louca. Não tinha nada da certeza moral da segunda guerra mundial, nao tinha nada da incipiência ideológica da guerra da coréia - era a mesma nojeira de sangue, destruição, morte, pavor, mas com uma trilha sonora sensacional, combates localizados (por um tempo) e ilhas de tranquilidade, cerveja, bagulho, momma-sons e mercado negro a meia hora de helicóptero de onde os pracinhas estavam "in the shit".

O livro carrega um paradoxo. Descreve o horror (o mesmo murmurado pelo Col. Kurtz) mas deixa um retrogosto glorioso - não da guerra em si, mas da observção pelo repórter.

Michael Herr tinha uma trupe de repórteres e fotógrafos loucos que andavam juntos e dois deles sumiram por lá mesmo - o filho do Errol Flynn, Sean Flynn, e um fotógrafo chamado Dana Stone - que, pelo que ele conta no livro, eram figuras adoráveis. Ele nutre por eles (e também pelos que não morreram) sentimentos análogos aos que soldados frequentemente descrevem sentir pelos seus camaradas - exatamente isso, a camaradagem de compartilhar os mesmos riscos, que não são poucos em uma zona de combate. Eles (e um outro fotógrafo descrito no livro) saíam de moto se dirigindo às zonas de operação - de uma dessas, no caboja, não voltaram, foram capturados por algum grupo narcoguerrilheiro local e os restos mortais de Dana Stone e Sean Flynn foram identificados em 2004.

No pós escrito Herr tenta desfazer a impressão de "glorificação" da experiência, mas é difícil - só é possível se compadacer das sequelas que a guerra deixou nele (e não foram poucas - o repórter, em pelo menos uma ocasião descrita no livro, largou a caneta para manejar uma metralhadora durante o cerco a Khe Sahn. Além disso, conviveu com a morte diariamente - acontecendo e acontecida). Não que tenha sido de propósito, pois seria idiotice escrever deliberadamente para glorificar o inglorificável. O ponto é: andar na frente de uma fila de marines em uma patrulha (como Dana Stone fazia questão de fazer, e os Marines gostavam, porque ele seria o primeiro a pisar numa mina ou levar um tiro, revelando assim a existência de um campo minado ou a posição de um franco-atirador), munido apenas de máquina fotográfica, em uma das mais perigosas áreas de combate de todas as guerras, estando lá por opção e um salário de merda - isso só pode ser glorioso.

A guerra do vietnam aconteceu muito antes da internet como a conhecemos - mas isso não impediu que a rede se tornasse repositório de farto material sobre o tema. Há inúmeros sites com histórias de veteranos, flickr´s com slides e fotos escaneadas, sites de associações de ex-combatentes e por aí vai. Há histórias tão inacreditáveis e surreais como as contadas por Michael Herr - de soldados, pilotos, marinheiros, repórteres e fotógrafos que frequentaram a guerra. Uma googlada dá em muitos bons resultados - como o link do flickr que vai acima, e que é de um soldado que, pelo tom de suas respostas aos comentários, meio que ainda está lá.

No pós-escrito, aliás, é essa sensação que Michael Herr transmite: ele voltou do vietnam depois de 18 meses, mas de certa forma ainda está lá.

E a cereja do bolo é a tradução feita por Ana Maria Bahiana, que aproximou as gírias dos soldados americanos ao nosso linguajar, e acertou na mosca ao traduzir "grunt" para "pracinha". Os diálogos entre os soldados são especialmente bem escritos, com adapatação das sonoridades, xingamentos e entonações. Além disso, há um cuidado especial nas notas explicativas sobre siglas e terminologia militar menos conhecida, além de precisão quase absoluta nas explicações sobre equipamento militar - e quem gosta de livros do gênero sabe que este é um dos defeitos mais comuns em traduções (em especial as da Bertrand Brasil). Em resumo, nunca li a versão original de Despachos do Front - e depois de ler essa edição, confesso que não sinto a menor vontade.

Enfim, qualquer coisa que eu pudesse dizer sobre o livro não faria justiça a ele e sua magnífica edição em português. Vale a leitura - no meu caso, foram três, só até agora.