terça-feira, 2 de abril de 2013

Metal sem fronteiras

É quase tautológico falar sobre como o heavy metal é um gênero que congrega seu público. Comparar as camisetas pretas de bandas às de times de futebol poderia parecer também uma obviedade - mas não é. No futebol, infelizmente, o sentimento de compartilhar uma experiência maior (o próprio jogo, a ida ao estádio), independentemente da agremiação escolhida pelo torcedor se perdeu há muito tempo, talvez desde a longínqua época em que senhores iam ao estádio de casaca e chapéu e senhoras empunhavam sombrinhas no que era um evento social seguro, civilizado. Pois hoje um show de metal é muito mais seguro e civilizado do que uma partida de futebol, como o fiasco do Metal Open Air provou: mesmo com o cancelamento de vários shows na undécima hora, o público se comportou exemplarmente, e não houve violência nem vandalismo. O mesmo senso de pertencimento e comunhão que sumiu dos estádios de futebol é um dos caracteres que distingue o metal de outros gêneros musicais. 

Ainda que sirva apenas de anteparo à realidade para um adolescente, como é tão comum, a adesão ao metal gera tamanha camaradagem entre seus seguidores que o que poderia ser apenas um recurso de auto-afirmação juvenil se transforma em algo mais parecido com o alistamento voluntário e entusiasmado em tropas que vão lutar alguma batalha épica - como, de resto, tantas bandas de metal já descreveram, de maneira mais ou menos pueril. O metal também assimilou e aperfeiçoou a auto-referência benigna comum nos primórdios do rock'n roll. As canções eram sobre elas mesmas, sobre como aquele ritmo era empolgante e furioso, sobre como era bom estar com os amigos, tomar cerveja, se divertir etc. Do "shake, rattle and roll" ao "heavy metal is the law" e bordões semelhantes se passaram 25 ou 30 anos, mas exatamente como o rock possui defensores a esgrimir por sua pureza e genuinidade, o metal também tem seguidores fiéis, que respondem rapidamente e com convicção quando perguntados sobre se determinada banda "é" ou "não é" metal de verdade. A essa altura, a matéria da Vice inglesa sobre os os "cowboys metaleiros" de Botsuana já circulou algumas vezes pelas redes sociais. É uma preciosidade sociológica, pois nenhuma teoria acadêmica poderá explicar satisfatoriamente como e por que, em uma país africano de clima tropical, algumas pessoas atribuem tanta importância a se vestir inteiramente de couro preto. Bem, elas próprias respondem: "Metal is given very extreme respect and great dignity in Botswana" ("o metal é tratado com extremado respeito e grande dignidade na Bostuana"). 


 
"respeito e dignidade" 

"Fervor religioso" é outra expressão frequentemente aplicada ao culto do metal por causa de lealdade que beira o fanatismo - as fotos do ensaio da Vice e as declarações dos bechuanos "metaleiros" são muito eloqüentes. Se vestindo de forma tão aparatosa, o que eles querem, na verdade, é mostrar seu amor e admiração por um tipo de música que, eles sentem, os representa de alguma forma. E é assim desde sempre, seja na Bay Area nos anos 80, seja nos subúrbios de Londres um pouco antes disso, seja um pouco depois disso em qualquer grande festival como Donnington, Dynamo e mais recentemente Wacken e Sonisphere. Os coletes jeans repletos de patches do Annihilator e do Metal Church estão, para o ressurgente thrash metal clássico em Brasília, como as jaquetas de couro e lenços pretos para o vigoroso heavy metal botsuanês. Em uma noite em que trabalhei até mais tarde, fiquei a escutar clássicos do thrash metal (meu subgênero favorito) no youtube - isso foi antes de minha mulher me indicar o infinamente superior Grooveshark - e, acabada uma música, eu escolhia outra da barra lateral de "vídeos relacionados". Entre faixas do Atrophy e do Dark Angel, escolhi "Addicted to Mosh", de uma banda que eu não conhecia, chamada Violator. Pelo nome da banda e pelo título da música, pela capa do disco e profusão de pontas e cantos vivos da tipografia, imaginei que era uma banda americana dos anos 80 que tivesse lançado 3 ou 4 discos e desaparecido quando os grupos de Seattle puseram o metal na geladeira. Ao ouvir outras faixas, tive certeza - era thrash metal clássico e sem nenhuma firula, direto, produzido de maneira crua mas sem qualquer defeito grave, empolgante e poderoso, e feito com tanta honestidade que qualquer sensação de que se está diante de algo "datado" desaparece rapidamente. Pensei ter descoberto outra banda obscura entre centenas, milhares de outras que surgiram nos anos 80, lançadas pela Metal Blade ou Nuclear Blas para durar tão pouco - e meses depois me surpreendi ao constatar, lendo a Vice brasileira, que o Violator é de Brasília, DF, e existe apenas desde 2002, embora faça exatamente o mesmo som que empolgava as hostes metálicas há mais de 20 anos.


 


Igualmente alguns meses depois de ler a matéria sobre o metal em Botsuana, conheci o Stane. Quem compartilhou o link no Facebook foi um dos personagens da matéria da Vice, cuja singela alcunha é Deadman Demon Rider - e a empolgação dele quando compartilhei novamente e recomedei a meus amigos que ouvissem o metal de Botsuana não me surpreendeu, exatamente, pois é assim no metal. Palavras de ordem foram trocadas - "espalhe a palavra!", "metal acima de tudo", "stay metal" etc. - feitas recomendações de outras bandas do underground (disse ao Deadman para ouvir o Violator), e ele pediu ajuda para que o Stane seja divulgado. Bem, nem precisava ter pedido, sou tão empolgado com essas coisas quanto ele.  



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 O som do Stane, assim como o do Violator, é bom: honesto, genuíno e feito com evidente entusiasmo. A demo "Maintainers of Brutality", de 2009, tem 5 faixas. "BA II" lembra um pouco "Fade to Black", do Metallica, mas com menos dedilhados e mais porradaria. A instrumental "Brutality" começa com um groove de baixo e um riff meio "space rock", e tem uma estrutura que deve, em alguma medida, ser influenciada pelo afrobeat de Fela Kuti. A repetição das bases de andamento moderado tem algo que remete a aquela sonoridade, e todas as músicas da demo são estruturadas mais ou menos assim: nada de andamentos muito rápidos e basicamente a mesma levada de bateria, exatamente como nas músicas de Kuti. "Buried Alive" tem guitarras grandiosas no refrão e ecos de Iron Maiden, mas ainda com o andamento contido e sólido. "Stane on Stage" é, à moda de "Iron Maiden", "Metal Thrashing Mad", "Whiplash" e "Heavy Metal is the Law" o hino auto-referente, de auto-afirmação, a que toda banda de metal recorre em seus primórdios. A letra fala de agruras sociais e da música como escape, como não poderia ser diferente. A última faixa, "Kill", tem uma toada parecida com o Black Sabbath de Masters of Reality e lembra um pouco C.O.C. e bandas congêneres. 

 Concordei com um amigo que achou o som "inocente" à primeira audição, mas, escutando com mais atenção, percebe-se que o Stane faz mais do que diluir diversas influências em uma mistura aguada e pouco original: os elementos puramente africanos do som o tornam interessante e instigante, e os riffs são excelentes. A produção limitada não chega a prejudicar, mas as músicas certamente se beneficiariam de um melhor tratamento, especialmente o som da bateria (embora com "som de teclado", é claramente uma bateria de verdade, trigada, tocada por um baterista). 

A cena de metal em Botsuana não é a única aglomeração improvável de admiradores de som pesado. Em Cuba, diversas bandas lutam contra o isolamento e mantém o gênero vivo em condições mais do que precárias. No Iraque, durante o auge da guerra civil que se seguiu à invasão americana de 2003, havia uma banda de metal, a qual foi retratada em um documentário. Até no Afeganistão assolado pela repressão do Taliban o metal encontra espaço como escape da violência e instabilidade. Aparentemente, nenhuma fronteira geográfica, o clima, as precariedades da vida em zonas de conflito, em países subdesenvolvidos e ditaduras podem refrear o metal. As letras pueris que falam sobre balançar a cabeça e aumentar o volume dos amplificadores, afinal, são mais verdadeiras do que pode parecer.