segunda-feira, 8 de março de 2010

Lampião

Recomendo fortemente a quem quer que se interesse por história militar do Brasil o livro "Guerreiros do Sol: Violência e banditismo no Nordeste do Brasil", de Frederico Pernambucano de Mello. Não é propriamente um livro de história militar, e embora o autor seja sociólogo, o trabalho contém descrições e explicações muito bem feitas das ações de "guerra brasilica" dos grupos cangaceiros - e uma distinção interessante entre os diferentes tipos de cangaço. A tese do livro é a da existência de um "escudo ético" da atividade cangaceira - basicamente, guerrilha e rapinagem, mas não apenas isso.

O livro não poderia deixar de se concentrar na figura lendária de Lampião - embora seja bastante abrangente e forneça uma genealogia do cangaço desde a seca de 1559.

Gostei particularmente destes trechos, nos quais Lampião demonstra porque era o "Rei do Sertão".

Sobre armamento:

"E foi nesse momento que perguntei a Lampião porque ele não usava o rifle de doze tiros, do cano grosso e oitavado, como quase geral. E ele:

- Já teve até uma pessoa minha que fez um verso explicando isso. Eu gosto desse aqui, de dez tiros, do cano de mamão, que tem a argola de banda e a culatra reforçada, e que tem um ponto de solda branca na mira, com os dois canos arrochados na ponta por uma alça, porque o pesado de doze tiros, o cano é de ferro, quinado ou redondo, custa mais a esquentar mas, quando esquenta, demora muito pra esfriar. E o cabra, no aperto de ver as balas saindo moles, sem precisão, depois de uns sessenta tiros seguidos e com o cano quase em brasa, se vale da água da cabaça ou, se tiver tempo, urina em cima, ou corre com ele agarrado pela madeira da coronha para não se queimar. O do cano de mamão de doze tiros, eu não aprecio porque é comprido e fino. Quando esquenta,. está sujeito a empenar com um tombo. Já o de oito tiros, é muito curto. Além de levar pouca carga, é meio desconforme para a minha altura. Você vê que o que me serve mesmo é este aqui, de dez tiros. Não tenho queixa dele".

Lampião, pelos menos por um tempo, não usava o rifle na bandoleira. Eis o porque:

"O rifle na bandoleira é motivo de relaxe. Assim, não. Está na mão toda hora. Sei de quem já se arruinou por ter pegadio com bandoleira".

Sobre a conservação da arma, a qual brilhava de limpa:

"Aqui primeiro vai lixa de ferro e depois vareta de fuzil, passada muitas vezes. Somento o aço com aço dá esse brilho. E conserva bem".

Finalmente, o verso - hábito forte entre os cangaceiros - declamado por Lampião sobre sua preferência pelo rifle de 10 tiros:

"Meu rifle é o de dez tiros,
Dessa da boca amarrada,
Cruzeta do ponto branco,
D'argolinha pendurada,
Cano de aço legítimo,
Da culatra reforçada".

O mais interessante é que se tratavam de guerrilheiros cuja ideologia era a rapina, e nada mais - e cujas atividades se davam num contexto muito peculiar. Fora isso, alguns cangaceiros eram motivados apenas por vingança. O próprio Lampião começou no bando do cangaceiro Sinhô Pereira, o qual não roubava, não estuprava e só matava seus inimigos declarados (e, aparentemente, se não o fizesse acabaria sendo morto pelo alvo, cedo ou tarde).

Além do texto excelente (e mesmo sendo um trabalho acadêmico - de mestrado ou doutorado, imagino - de leitura tranqüila e nada empolado), o livro ainda tem um sensacional capítulo de fotos e vários anexos interessantes. Não fui eu que comprei (é da biblioteca do meu pai, da qual sou o curador informal), mas posso dizer que vale cada centavo.