quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Esse Quam Videri

Em algum filme que vi, não consigo lembrar qual, um personagem descreve uma situação e diz que alguém teve um ataque de "self-righteousness". A tradução dessa expressão, na legenda, foi "farisaísmo". Não entendo nada da bíblia e não sou linguista, mas, na hora, aquilo fez sentido. Pelo pouco que consigo lembrar, "fariseus" eram um daqueles grupos religiosos que disputavam a primazia na Galiléia, na época de Jesus. E a vibe nessas disputas religiosas é sempre a mesma: prevalece o desígnio divino que cada grupo atribui a si, conforme uma interpretação peculiar das escrituras, ou algum fenômeno natural raro e tido como sinal divino etc. Saduceus, Fariseus e Macabeus disputavam a primazia de ser a religião "verdadeira" - como, de resto, acontece até hoje em praticamente toda religião monoteísta. "Fariseu" tem, entre cristãos (especialmente os que conhecem bem a religião), um tom pejorativo, mas não é nem esse o ponto.

"Farisaísmo" é a tradução perfeita de "self-rignteousness" exatamente porque, numa discussão sobre bases mais ou menos impossíveis de comprovar materialmente, toda a argumentação se transforma em auto-indulgêcia: o "sim porque Deus quis" que, materialmente, é o mesmo que  "sim porque sim".

Gente realmente qualificada já escreveu sobre isso, mas qualquer semelhança entre isso e ideologia e ativismo não é apenas coincidência. Ativismo e proselitismo religioso são a mesma coisa.

Ora, o religioso que bate na sua porta e promete o paraíso (caso você se filie àquela religião) não tem como, materialmente, comprovar tudo o que ele está dizendo - tem? Não, não tem. É o mistério da fé etc.

A mesma coisa acontece com o ativista. O ativista, assim como o proselitista religioso, quer mudar alguma coisa. O proselitista religioso se contenta em ganhar ovelhas para o rebanho - para pagar dízimo, aumentar a frequência da igreja, fazer boas ações etc. Para ganhar essas ovelhas, o proselitista religioso precisa mudar alguma coisa, sim: ele precisa convencer o destinatário das suas mensagens a acreditar naquilo que ele promete (e que nunca é de graça: é preciso ter fé, orar, fazer o bem etc.). Se o proselitista consegue fazer isso, sua missão está cumprida.

Com o ativista, é um pouco diferente. O ativista quer mudar alguma coisa, mas não é só a sua cabeça: é "a sociedade", "o mundo", "as coisas", "o sistema". Não que ele também não tente convencer outros indivíduos; mas, para o ativista, é o aspecto coletivo muito mais importante que o individual.

O que há em comum entre os dois, ativismo ideológico e proselitismo religioso, é a impossibilidade material de provar o acerto das propostas que denfendem: o proselitista não consegue provar que existe um paraíso no além; o ativista não consegue provar que pode existir um na terra. Em nome de ambas as coisas também já se derramou bastante sangue e muitas pessoas sofreram - no entanto, as pessoas não desistem de tentar ter razão e invocar para si o monopólio da certeza do que é melhor - não apenas para si próprias, mas para todos os seus semelhantes. E isso é feito, no caso do ativismo, sob um "escudo ético" (expressão emprestada de Frederico Pernanbucano de Mello, autor do estupendo "Guerreiros do Sol") de se estar pretendendo "fazer o bem", ou "melhorar a sociedade" ou, ainda, "corrigir injustiças". No clima de relativismo moral que sempre foi típico da cultura brasileira, essas coisas vicejam com ainda mais facilidade - especialmente agora que vivemos na era do "pobre quando come melado se lambuza" como justificativa para qualquer malfeito cometido no governo, já que o é sempre "pelo bem dos pobres" ou no curso da melhoria da vida destes.

Por enquanto, esse tipo de ativismo rendeu um bom dinheiro para seus protagonistas mais bem colocados: blogueiros ditos "progressistas" que são sabujos do governo; donos de "ONGs" com ligações partidárias; profissionais de exegese e hermenêutica da Lei Rouanet. Quem ainda não conseguiu uma "boquinha" - por incompetência ou por algum pejo - passa o dia na internet pedindo doações enquanto entoa loas a si próprio, explicando como é tolerante, magnânimo, superior à moral amesquinhada da "classe média", da "grande mídia", "da igreja" e de outras grandes entidades abstratas - que são apenas sparrings retóricos sobre os quais essas pessoas, no mais das vezes, pouco ou nada sabem a respeito.

Veja o exemplo d'O Escritor que pretende ensinar tudo: desde quanto e o que consumir, a como ter relações sexuais e arrumar a casa. Para ele, todas as convenções sociais são "prisões": orientação sexual, emprego, casamento, aquisição de bens materiais etc. O sujeito é tão confuso que chega a se lamentar por não ser homossexual, argumentando que isso o "priva" de uma experiência mais completa da sexualidade. Ele, no entanto, vende palestras nas quais tenta convencer quem for incauto suficiente a pagar por isso a fazê-lo. E se explica: "sou mesquinho com minha sexualidade". Mas que belo espécime de super-homem, não só ele sabe o que é melhor para todos nós, ele também é capaz da auto-crítica!

O fenômeno se repete na tropa de "feministas de internet",  ativistas digitais que passam os dias a patrulhar em busca de ocorrências de opressão pelo patriarcado em todas as instâncias da vida. E elas se fundam em estatísticas - algumas, verdadeiramente estarrecedoras - para corroborar seus pontos de vista, como a ocorrência de um estupro a cada cinco minutos no Brasil (acho que era isso) ou o assassinato de aproximadamente uma dúzia de mulheres por dia, que pretendem transformar no crime de "femicídio". Há, também, recursos de argumentação e conceitos exclusivos das feministas, como "empoderamento" (na realidade, um neologismo que vem do anglicismo "empowering") e o fascinante conceito de "falsa simetria". A tal "falsa simetria" significa, a grosso modo, que se um homem e uma mulher sofrerem idêntico ato preconceituoso - digamos, não ser contratado em vaga de emprego por conta de serem, justamente, homem ou mulher - o homem sofrerá menos opressão pois, ao longo de toda a história, a mulher foi mais oprimida. A lógica é: um homem jamais deixaria de ser contratado por ser homem, logo, ele é menos oprimido, logo, não existe simetria possível para se comparar as agruras sofridas por homens e mulheres na internet.
O "conceito" teve seus dias de glória nos embates sobre aplicativos de avaliação de homens e mulheres (Lulu e Tubby), assunto que por dois ou três dias pautou as redes sociais. Indagada sobre a questão, uma internauta respondeu apenas "não pq falsa simetria", a panacéia retórica que encerra qualquer discussão entre opressores e oprimidas.

A questão, no fim das contas, é: o ativismo tem alguma finalidade, além de compor a personagem de quem o professa?

Há quem diga que sim, que a encheção de saco "cria awarness", faz as pessoas procurarem saber mais sobre questões importantes e, quem sabe, até deixarem de ser aquilo que o ativista deseje que elas deixem de ser - o que deve ser bom, já que ativistas só querem o bem de todos nós, não é mesmo?

Por outro lado, há uma máxima que é sempre repetida: "ninguém muda ninguém". Em discussões de internet, quando a incoerência de alguém é exposta, é comum que a discussão acabe rapidamente em um consenso: "não adianta apontar a incoerência de ninguém". E, de fato, é raro que alguém admita ter mudado de idéia.

Até acho que ativistas notórios tenham preocupação verdadeira com as causas sobre as quais professam - mas acredito mais ainda que a maior preocupação dele, do ativista de internet (veja bem: estou falando do ativista que fica o dia inteiro no computador, cagando regra, não daquele que põe a mão na massa e, silenciosamente, se dedica, diretamente, a qualquer causa), é parecer alguma coisa: parecer bom, parecer preocupado, parecer engajado. PARECER, apenas. E isso me lembra sempre o lema da faculdade de música de Berklee, instituição na qual, quando era adolescente, sonhei em estudar: ESSE QUAM VIDERI. Tanto quanto a tradução de "self righteousness", a expressão fazia, pra mim, todo sentido: "SER, AO INVÉS DE PARECER" era o lema da universidade. Estudar profundamente música, conhecê-la e dominá-la, ao invés de apenas parecer um músico. Isso fazia muito sentido. Mais do que conhecer o jargão ou passar a tarde em lojas de instrumentos musicais, ser músico era conhecer música profundamente, estudá-la: não apenas parecer um músico.
Com o ativista de internet acontece, curiosamente, o contrário. Se ele for pego em uma incoerência, invariavelmente vai reagir acusando de inveja ou ódio, ou os dois. "Ódio gratuito", "haters gonna hate" etc. Se você discorda de um homossexual, é homofóbico. Se discorda de uma feminista, é machista, e por aí vai. E o assunto pode ser o mais trivial, como uma receita de bolo. O deputado Jean Willys, todos lembram, foi flagrado gastando verba parlamentar para pagar cervejas bebibas por ele na beira da praia - e acusou de homofóbicos todos os que cobraram dele uma explicação.

Essas são as demonstrações mais eloquentes de que se trata de uma cultura de aparências: o deputado, nem quando flagrado malversando dinheiro público, deixou de lado seu ativismo. Não se preocupou em ser taxado de "ladrão" tanto quanto em deixar de ser um ativista. O mesmo acontece com outros exemplos de ativistas de internet, os quais mantém outras atividades que não o ativismo e, quando confrontados sobre a falta de qualidade de seu trabalho, se saem com a acusação de machismo, racismo, homofobia ou algum outro tipo de "preconceito".

Isso poderia ser sintomático de arrogância, de pessoas que tem tanta certeza de ser infalíveis que qualquer crítica só poderia vir de uma mente preconceituosa - mas é mais complicado do que isso. De maneira mais ou menos consciente, todo ativista sabe que o ativismo deve, sempre, ser a aparente questão central da existência. Não se admite nenhum desvio: a causa exige empenho sempre, 24 horas por dia, 7 dias por semana. Pode olhar: todos os ativistas tem isso em comum, não falam de outra coisa e, se falam, é sempre de maneira a relacionar o assunto com a causa e o ativismo (mesmo maltratando a lógica no processo).

Nesse passo começam a pipocar semelhanças com outras coisas - e embora ativistas de internet sejam, hoje, mais um motivo de troça do que qualquer outra coisa, é de se pensar o que fariam se conquistassem, um dia, poder de verdade.

Não tenho a menor dúvida que alguns deles fuzilariam, sem pensar, seus adversários - e pode apostar que o fuzilador teria mencionado "democracia" e "tolerância" em sua timeline muito mais vezes que o fuzilado.