quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Compass Point

A internet talvez não mate o livro, como ainda não matou o disco; a fotografia digital ainda não matou o filme, e os jornais, emissoras de TV e rádio rapidamente se adaptaram. Embora o disco ainda não tenha morrido, está melhor do que a fotografia, mas pior do que o livro.

Qualquer pessoa na faixa dos 30 anos se lembra de uma época anterior à internet, e bem anterior ao aperfeiçoamento que permitiu divulgar música com tanta facilidade. O tempo das gravadoras e rádios como intermediários implacáveis, e antes da popularização do equipamento necessário para uma gravação minimamente audível - a grande maioria das "fitas demo" era de péssimas gravações caseiras. Aliás, a tal da "fita demo", essa sim, está morta há muito tempo. Hoje qualquer estúdio de ensaio é capaz de uma gravação minimanente decente por 30, 40 reais a hora, e em formato digital - nada de fitas DAT ou outros formatos caros encontrados apenas em estúdios profissionais, do tipo que grava discos, jingles, horário eleitoral, propaganda. A gravação é feita e transferida para um pen drive, o sujeito chega em casa e bota aquilo no myspace ou no youtube, avisa as pessoas e assim já surgiram dúzias de "fenômenos". Uma gravadora para pagar pelo gravação e pela divulgação, hoje, é supérflua. Ela até pode encampar o material depois, mas não é mais um requisito.

Qualquer banda que quiser, hoje, pode, sozinha, gravar e divulgar seu material - com grande facilidade, praticamente em tempo real. Mas já foi bem mais complicado do que isso.

Back in Black, do Ac/Dc, fez 30 anos no dia 25 de julho do ano passado. É um dos discos mais vendidos do mundo, quase 50 milhões de cópias. Uma versão remasterizada foi lançada em comemoração. É o principal disco da banda e um disco de rock muito relevante. E foi gravado em um estúdio chamado Compass Point, nas Bahamas.

A realidade sempre supera a ficção, como bem prova a existência do Compass Point. Fundado em 1977 pelo dono da Island Records, o estúdio tem o mesmo nome de um exclusivo resort do qual é vizinho. Rolling Stones, Bob Marley, Iron Maiden e Grace Jones - além do AC/DC - gravaram lá. "Back in Black" é, aliás, o disco mais vendido da história do disco. Invariavelmente, essas bandas e artistas voltavam ao Compass Point, tendo gravado mais de um disco lá - o Iron Maiden gravou três: Piece of Mind (83), Powerslave (84) e Somewhere in Time (86) antes que o estúdio fechasse, no começo da década de 90, para reforma e troca de equipamentos. Reabriu em 1992.

As sessões de gravação duravam meses - havia, é evidente, o custo de aluguel do estúdio, transporte e hospedagem da banda e do produtor, equipamentos, alimentação etc. Raramente artistas desse calibre chegavam ao estúduo com as músicas totalmente prontas. Os instrumentos eram gravados individualmente, as músicas eram buriladas, trechos eram acrescentados e outros extirpados, em uma época em que não existia gravação digital e edição praticamente em tempo real. Se alguém errasse, gravava de novo.

Back in Black vendeu mais de 50 milhões de cópias; Powerslave cerca de 3 milhões - o investimento das gravadoras acabava sempre se pagando. A lista de clintes do Compass Point é longa e variada. Valia a pena gastar centenas de milhares de dólares ou libras para que grandes discos fossem gravados em um ambiente paradisíaco - certamente havia menos pressão gravando em Nassau que em qualquer cidade grande - e depois vendessem milhões de cópias, banda e gravadora lucrando largas margens.

O Compass Point encerrou suas atividades em setembro do ano passado, logo após a gravação de "The Final Frontier", o mais recente (e possivelmente último) disco do Iron Maiden, um dos clientes mais fiéis do estúdio. Na página oficial, "uma série de incidentes e acontecimentos sócio-políticos" são apontados como o motivo.

Manter um estúdio de gravação nas Bahamas já é caro - manter bandas gravando lá por 6 meses deve ser mais caro ainda: mais ou menos como os gastos da fundação Ruben Berta - milhões de dólares por mês em caviar e vinhos finos para abastecer a primeira classe da extinta Varig. Gravadoras são companhias como qualquer outra: precisam que seu investimento seja multiplicado muitas vezes em forma de lucro. No negócio de atravassedor que uma gravadora opera, a equação é simples: X gastos em gravação e divulgação devem se tornar 10X em vendas de disco.

A venda eletrônica de músicas a 0,99 centavos de dólar há de ter reduzido drasticamente a margem de lucro de todos os envolvidos. Há alguns anos, era inimaginável uma banda vociferar contra downloads de música, movimento inaugurado por Lars Ulrich, baterista do Metallica, com poucos resultados. É comum que bandas e seus integrantes reclamem, no twitter e em outros lugares, de quem baixa suas músicas de graça. No dia do lançamento do último disco do Anthrax, o baixei de graça - e reconheço que vale mais do que 10 dólares. Custaria pouco mais nas lojas (aliás, livrarias como FNAC e Siciliano, já que as lojas de disco estão rapidamente desaparecendo), mas passados mais de dois meses, não encontrei o excelente "Worship Music" para vender em lugar nenhum.

Aliás, o Anthrax, em sua melhor fase, era uma banda da Island Records - cujo fundador era dono do Compass Point.

As bandas, felizmente, continuam.