terça-feira, 15 de outubro de 2013

Procure saber (onde está o dinheiro)

Isso certamente passa pela cabeça de Paula Lavigne e dos artistas representados por ela no mesmo ritmo que as quantias de royalties recebidas por eles diminuíram na última década. No caso da empresária, deve ser ainda mais preocupante já que ela, em tese, fica com apenas parte daquilo que seus clientes recebem - ou recebiam. O mp3 acabou aos poucos com os "formatos físicos", e hoje ninguém mais é obrigado a comprar o disco para ouvir as músicas. Aquela que era a principal fonte de renda dos artistas secou - é verdade que figuras como Lobão sempre disseram que o dinheiro vinha mesmo dos shows, eis que as gravadoras roubavam tudo para elas, e talvez as coisas no Brasil fossem um pouco menos organizadas e transparentes do que em outros lugares. Tim Maia era outro que se queixava.

Seja como for, é interessante notar como em alguns gêneros musicais as coisas mudaram - aliás, para benefício dos fãs. Quem achava que veria o Black Sabbath praticamente original reunido, sendo que claramente nenhum deles - talvez o Geezer - tem condições para isso? Quem achou que teria tantas chances de ver o Iron Maiden ao vivo? Ou, ainda, tantas e tantas bandas sendo reativadas, fazendo shows comemorativos de seus discos mais importantes etc? É ótimo para quem gosta de rock e metal ter tanta chances de ver suas bandas favoritas ao vivo. Mas o que será que as bandas e seus integrantes pensam?

Todas essas pessoas pensavam que, com 50 ou 55 anos, estariam aposentadas, vivendo dos rendimentos de enormes pilhas de dinheiro que se acumulavam todo mês, resultado da venda de milhões e milhões de discos, direitos autorais pela execução em rádio e TV etc. Poderiam cultivar seus hobbies em paz, viver sem preocupações e, além disso, manter o padrão de vida nababesco de rockstars. Veja a casa onde morava o vocalista do Metallica, por exemplo, e imagine apenas o custo de manter a grama aparada. Veja, também, aquele programa "Cribs" da MTV americana e, enfim, #procuresaber (hehehehe) algumas histórias folclóricas que flutuam por aí sobre gastos ridiculamente altos que artistas populares podem se dar o luxo de fazer.

Imagine o mau humor de algumas dessas pessoas quando perceberam que teriam que trabalhar até o fim da vida, como um blue collar qualquer? Pois é exatamente o que está acontecendo, e há muito choro e ranger de dentes. No campo do rock pesado arrisco dizer que um pouco menos - há reclamações mais ou menos frequentes sobre o impacto da distribuição digital descontrolada sobre o negócio da música, mas as bandas seguem fazendo extensas tours e voltando com freqüência ao Brasil, sempre com bastante profissionalismo e aparentando gostar do que estão fazendo.

Efeito similar certamente é sentido por Paula "Horseface" Lavigne e sua turma. Aliás e como já se disse, especialmente por ela, já que, além de fazer barracos e ser rude (como, reza a lenda, todo bom produtor deve fazer), ela é que cuida do dinheiro do Caetano e atua num negócio cuja principal mudança foi a pulverização das fontes de dinheiro de seus clientes.

Primeiro mexeram no ECAD, que até outro dia era suficiente para  "arrecadar" (qualquer um sabe que isso é uma piada) direitos autorais. A taxa de administração cobrada pela autarquia foi diminuída, além de outras alterações que fazem sobrar mais dinheiro para o artista. Fazia bastante tempo que o ECAD era problemático, um verdadeiro ralo de dinheiro sem nenhuma fiscalização - mas foi uma CPI que propôs a criação de uma nova lei para reestruturar o órgão e parar com a roubalheira. Paralelamente, tramitou uma proposta de emenda constitucional para isentar de impostos CD's e DVD's de artistas brasileiros (e também músicas compradas online). A "PEC da música" foi aprovada; o projeto de lei de resstruturação do ECAD ainda não.

Ambas as iniciativas foram encampadas pelo "#Procuresaber" de Paula Lavigne, e, na esteira do sucesso das mudanças, também passou a se discutir sobre biografias. O grupo liderado pela ex-mulher de Caetano é contrário à publicação desautorizada de biografias para serem vendidas - e usa como principal fundamento o art. 20 do Código Civil, o qual dispõe o seguinte:

"Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais".

O comando poderia ser redigido com mais clareza, é verdade. Afinal, alguém sempre poderia dizer que "a exposição ou utilização da imagem" tem um sentido mais estrito (como o direito de imagem do jogador de futebol) do que a interpretação corrente. Isso sem falar da segunda parte do artigo, que condiciona a proibição à violação da "honra, boa fama ou a respeitabilidade" do sujeito e a destinação a "fins comerciais". 

As coisas não são tão simples quanto podem parecer. O que seriam "fins comerciais"? Depende.
Pelé disse que jamais associaria seu nome ao de uma bebida alcoólica e, no entanto, todos conhecemos a gloriosa CANINHA PELÉ.



A cachaça comprou do Pelé o direto de estampar seu rosto no rótulo e batizar o produto com o seu nome.
Quantas pessoas compraram a cachaça só por causa disso? É impossível saber. Certamente gente que gosta de cachaça mas não de futebol deve ter comprado - entre outras tantas hipóteses. Em suma, é difícil mensurar se foi ou não um bom negócio para a fábrica, mas provavelmente sim.

E biografias, não seriam como cachaças com rostos famosos no rótulo? Não vendem apenas por que se trata - justamente - de alguém conhecido, sobre o qual o público tem curiosidade?

É aí que a questão começa a ficar tortuosa. Em parte, a resposta é afirmativa. Aliás, falando em "cachaça" e em "futebol", um excelente exemplo é a biografia de Garricha escrita por Ruy Castro. Quem comprou o livro, comprou porque admira Garrincha, certamente. Mas não só: quem conhece (e gosta, é claro) do texto de Ruy Castro certamente também comprou o livro por isso. E isso porque não se trata de uma narrativa apenas da vida privada do anjo de pernas tortas, mas de todo o seu contexto, de sua vizinhança, de suas origens. Uma boa biografia jamais será totalmente ocupada do biografado - aliás, nas melhores delas o equilíbrio entre, digamos, "o pessoal e o profissional" impera.
É o que acontece em outra excelente biografia escrita por Ruy, a de Carmem Miranda. Ao mesmo tempo em que a vida pessoal de Carmem é descrita, as indústrias musicais e de entretenimento brasileira e americana também são - em profundo detalhe, com uma preciosa discografia indicada por Castro e abundância de fontes e material que diz respeito ao período histórico em que a biografada viveu.
A biografia de Casimiro Montenegro, escrita por Fernando Moraes, é outro exemplo interessante: é muito mais a história do ITA e do surgimento da engenharia aeronáutica no Brasil do que da vida pessoal de Montenegro.

A questão está aí: uma biografia só será digna de interesse quando a vida do biografado se entrelaçar, de alguma forma, com a história. O argumento segundo o qual a privacidade deve ser protegida a qualquer custo é bastante pedestre, na exata medida em que quem o utiliza sempre parte de uma premissa como "e se resolvessem biografar sua mãe?" É uma variante das discussões sobre segurança pública em que alguém defende a morte de bandidos, outro alguém diz que não é bem assim e o primeiro retruca "é porque não foi com você ou com algum familiar".

Bem, diferente do que acontece com assaltos e latrocínios, ninguém está sujeito a ser "aleatoriamente" biografado - graças, justamente, ao funcionamento do mercado editorial. Se não há potencial para o livro se pagar, ele não será lançado - da mesma forma que acontecia, antes, nas gravadoras: nenhuma delas investia naquilo que achava que não tinha potencial para primeiro se pagar e, depois, dar lucro. Caetanos, Gils e Robertos vivem da margem de lucro sobre o ingresso de seus shows, e ninguém põe reparo nisso. Eles fazem o show; recebem por isso. Um show precisa se pagar (local, equipamento, transporte, iluminação etc.); o músico precisa comer, o artista precisa manter seu padrão de vida. Ou alguém acha que o Roberto Carlos recebe o mesmo que o baterista da banda dele a cada show?

É claro que não. Por menos de centenas de milhares de reais ele sequer sai de casa. E é porque ele é uma pessoa tão pública, mas tão pública, que não se pode dar ao luxo de sair de casa pra tomar um café na esquina - é um jeito de viver. Foi a vida que ele escolheu. É o preço que ele pagou. E é por isso que ele pode navegar no Lady Laura. Se ele quisesse ser um funcionário público anônimo, ele também poderia, mas viveria com um salário de funcionário público, e anônimo.

Mas não é só o dinheiro. Também há pessoas riquíssimas mas anônimas, e cujas biografias não teriam interesse literário e muito menos mercadológico.

Então, como resolver o problema? A intimidade de artistas como Caetano e Lenine vale "menos" do que a de uma pessoa anônima?    

Talvez a questão pudesse ser resolvida, de um ponto de vista mais moral, mediante o seguinte silogismo: quem escolhe viver tão publicamente sacrifica (uma modalidade de renúncia tácita, talvez?) um pouco de sua intimidade em troca dos lauréis mais elevados que a sociedade confere a seus integrantes.

De um ponto de vista mais, er, "jurídico", é aquela velha hipótese de colisão: de um lado, o direito do biografado a ter sua vida privada a salvo dos curiosos; de outro, o direito à informação, considerando que ele surge quando o biografado possui notoriedade suficiente para justificar o interesse. Eu não poderia dizer melhor do que o juiz que não deu a liminar par ao João Gilberto contra a Cosac Naify (a decisão está contida em outra, aqui). E, na boa, o raciocínio destrói qualquer defesa do possível do #Procuresaber.
Queiram ou não queiram, Caetanos, Gils e Robertos transcenderam a história de vida exclusivamente pessoal, de "intimidade", e são parte da história do Brasil. Impedir que essa história seja contada é, sim, censura. Eventuais exageros e incorreções podem ser corrigidos e punidos, exatamente de acordo com o devido processo legal - aliás, nos termos de parte do art. 20 do CC. Todo o aparato para que mentiras sejam punidas já existe. Qual é, então, o problema?

Voltamos ao começo: o problema é dinheiro. Livros são caros, tem potencial de vender bastante - eles querem receber, afinal, entendem que a biografia só vende por causa do biografado: e isso pode ser verdade quando se trata de coisas bisonhas como "biografias" de Justin Bieber - quase a mesma coisa que um caderno Tilibra com ele na capa, ou uma lancheira. Ninguém comprou uma biografia dessas por causa da sua qualidade ou da notoriedade de quem a escreveu (e onde se lê "ninguém", me refiro a adolescentes histéricas que aprenderam a ler há pouco). E, ainda assim, é óbvio que Justin Bieber tem alguma relevância - ainda que seja de pouca duração e mais ligada às estatísticas do que à relevância musical e cultural.

Em suma, o argumento segundo o qual o art. 20 do CC impede o "estouro da boiada", e que sua mãe seja biografada mesmo que não queira, é totalmente furado - tanto quanto os argumentos de Paula Lavigne e as infelizes colocações feitas recentemente por ela e pelo resto da turma.