domingo, 20 de abril de 2014

Atrophy: um enigma do thrash metal

Em algum escritório sob ameaça de ser esvaziado, alguém, num lampejo de criatividade mercadológica, teve uma idéia - coisa que executivos de gravadoras passaram a precisar ter desde que os fantasmas do Napster e do mp3 começaram a rondar o negócio de discos. Pode até ser que o plano não tenha surgido de uma mente acostumada a ler a parada da Billboard como algum dos personagens de Matrix lê os códigos que parecem escorrer na tela de um computador, transbordando de uma "mente-mestre" ávida por se reproduzir como um vírus - pouco importa. Alguém escolheu quatro bandas que, em algum momento de suas trajetórias, estiveram associadas fortemente ao thrash metal, gênero que, pelo cânone, é uma mistura de heavy metal e hardcore; uma resposta ao rock "farofa" tocado por aspirantes a travesti de bandas como Poison, Mötley Crüe e Cinderella. A convenção também dispõe que o thrash surgiu na "bay area", região de São Francisco, Califórnia, que compreende parte da própria San Francisco, Oakland e San Jose. Havia, ali, uma massa de jovens que ouviram muito Black Sabbath, Judas Priest e Iron Maiden - mas que, contrariamente aos seus correspondentes de Los Angeles, não tinha nenhum interesse por maquiagem ou permanentes no cabelo.

  Metal, isso? R: NÃO.

O thrash metal é um filho indesejado e nascido a fórceps - e não é nenhum exagero dizer isso, quando se considera o que era feito no começo dos anos 80. As grandes bandas de heavy metal estavam em atividade, gravando e excursionando, com bons resultados (embora a qualidade do material fosse questionável). Mas o dever do filho é sempre superar o pai. Gerações de ouvintes de Kiss e Deep Purple digeriram e regurgitaram álbuns emblemáticos e, na falta de alguém para lhes dizer o que fazer ou para onde ir, resolveram aumentar o volume além do "11" do amplificador do Spinal Tap. Era o momento pelo qual, talvez sem saber, Tony Iommi tanto esperasse: ele não precisava mais ser o protagonista, o líder; não precisava mais acordar cedo e puxar a fila. Aliás, se formou uma fila de criadores de riffs centenas de vezes maior do que todas as linhas de cocaína que ele já tinha cheirado em toda a sua vida. O heavy metal cresceu como uma supernova e explodiu: surgiu uma nova galáxia.

Metal, isso? R: Quase.

Algumas das influências mais citadas pelas novas bandas de thrash metal, aliás, eram subprodutos do Black Sabbath: Angel Witch, Diamond Head e Saxon estavam entre as principais. Estas eram, por sua vez, a resposta inglesa à estagnação do metal tocado por lá - o que é perfeitamente compreensível quando se considera o evidente declínio das bandas grandes que haviam começado sua trajetória no final dos anos 60. Mas os ingleses tinham, talvez, mais pruridos que os americanos: enquanto criaram atos teatrais como Venom e Iron Maiden, os americanos tiveram outras idéias. Aliás, a idéia principal era justamente essa: a agressividade não estaria nos pseudônimos, nas roupas de couro justo e nem em referências a satã, mas no som, nos riffs, na levada.Os trajes, é claro, eram deliberados; entretanto, para parecer mais como mendigos do que sacerdotes de algum culto satânico medieval.

 Metal, isso? R: SIM. 

E assim surgiu o Metallica; da sua costela arrancada violentamente, o Megadeth. E também da bay area vieram Slayer, Testament, Exodus e Dark Angel. E o thrash metal se espalhou pelos EUA: do outro lado do país veio o Overkill, de New Jersey; de Nova Iorque veio o Anthrax. Mas não para por aí, de jeito nenhum. No Arizona havia grandes bandas de thrash metal. O baixista Jason Newsted, que substituiu Cliff Burton no Metallica, é egresso de uma delas, o excelente Flotsam and Jetsam, ativo até hoje. Há também as que desapareceram, e a mais enigmática delas - pelo menos para mim - é o Atrohpy. 

 
Conheci o Atrophy por acaso. Lá por 1995 eu fazia aulas particulares de matemática, e precisava pegar dois ônibus para ir às aulas, mais dois para voltar. A parada das duas conduções era um pouco distante, e no caminho tinha uma loja de discos. Voltando de uma aula entrei na loja, e vi um grande cesto de vime cheio de discos com uma folha de papel rabiscada de pincel atômico indicando que qualquer exemplar daquela cesta custava R$ 1,00, dinheiro que eu tinha para gastar! Me dirigi à pilha de discos usados e o terceiro ou quarto que olhei pareceu promissor. O nome da banda escrito em letras pontudas e afiadas; um palhaço psicótico entre filas de mísseis balísticos marcados "USA" e, do outro lado, outros com a foice o martelo; no verso, a marca da Roadrunner, selo que lançou grandes discos de metal. Os nomes das músicas e a foto da banda - alguns integrantes com cintos que imitavam fitas de munição de metralhadora - me convenceram: só podia ser um disco de metal, e dos bons. Cheguei em casa e confirmei: era uma pedrada. Um disco excelente, daqueles que, quando acaba, parece que acabou de começar. As músicas tinham estrutura como as do Iron Maiden, mas com muito mais peso e agressividade. O som do disco era afiado; os riffs tinham a proeminência certa, mas o baixo era totalmente audível e o som da bateria claro. O vocal era sem invencionices: agressivo e rasgado sem ser exagerado ou caricato.



A banda é extremamente competente, e o som, absolutamente redondo. As alternâncias entre levadas rápidas e outras lentas são executadas com perfeição, as passagens mais truncadas com segurança. Todas as músicas tem refrões excelentes, bons solos, passagens rápidas com dois bumbos tocados como um metrônomo. Na faixa "Preacher, Preacher", por exemplo: lá pela metade todo mundo para, e o baixo comanda a volta para um trecho que soa como a mistura de Iron Maiden e Testament. Na sequência, uma faixa chamada "Beer Bong", com a homenagem a diversas marcas da bebida e um riff tão cortante como a notícia de que a cerveja acabou. A música que dá nome ao álbum é uma obra prima do thrash: a quantidade certa de alternâncias entre as levadas e um riff memorável, com o baixo, de novo, comandando as mudanças.

E assim eu poderia seguir descrevendo músicas excelentes, executadas com perfeição, letras inteligentes sobre temas relevantes - que incluíam a guerra fria, vigente à época do lançamento - sem que você tivesse a mínima idéia do que eu estou dizendo. Porque o Atrophy gravou esse disco, gravou mais um, e sumiu. Nunca fez uma tour abrindo para o Slayer, nunca tocou em um grande festival de metal, nunca veio ao Brasil. "Socialized Hate" foi lançado em 1988, seu sucessor, "Violent by Nature", em 1990. É outro baita disco, muito melhor do que qualquer coisa que o Overkill ou Annihilator tenham gravado; no entanto, nunca vi uma camiseta do Atrophy pra vender; o que dizer, então, de ver alguém usando uma na rua. Do Overkill, por outro lado...

 
É difícil, para mim, entender como encontrei um vinil usado do Atrophy em um pequeno sebo de discos que não existe mais, em Curitiba, há quase 20 anos, e ninguém nunca ouviu falar da banda - especialmente quando se trata de uma banda tão boa. Qual foi o problema? Sorte? Timing? Ou excesso de entusiasmo meu? Nunca saberemos. Isso tudo é sempre desculpa para, entre várias cervejas, a retomada de um velho debate com amigos entusiastas de som: por que certas bandas dão certo e fazem sucesso, e outras não? Sempre me pareceu que o Atrophy reunia todas as condições para ir longe e ter uma grande trajetória - e não estou nem falando do estrelato milionário do tipo "Big 4", mas das bandas de thrash que permanecem fiéis às suas raízes e não fazem concessões comerciais, e continuam, ao longo do tempo, mantendo um exército de fãs por todo o mundo. Em suma, o Atrophy poderia facilmente ombrear com o Exodus ou com o Testament. 

Seja como for, por muitos anos tive só o vinil de "Socialized Hate", e faz muito tempo que não tenho um toca discos. Claro, posso ouvir nos youtubes e groovesharks da vida, mas gosto de discos e sempre quis poder ouvir o Atrophy novamente, no aparelho de som, e não no fone de ouvido ou nas caixinhas esquálidas do computador. Eis que fui à gloriosa Galeria do Rock (na véspera da sexta-feira santa, veja só) e lá encontrei o CD. Primeiro em uma loja em que o vendedor tentou me cobrar R$ 75 - talvez porque eu tivesse dito que procurava o disco há anos, tinha saudade etc. Desisti. Andei mais um pouco, entrei em outra loja, achei o mesmo CD por R$ 38 - aliás, o mesmo relançamento de um selo polonês que tentaram me empurrar antes, que é numerado, já que apenas 2.000 cópias foram prensadas. O primeiro que me ofereceram era o 1201. Esse era o 1202, quase pela metade do preço. Levei sorte - e me senti novamente com 16 anos, como se estivesse pagando R$ 1,00 pelo mesmo disco.

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